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A VIDA SEXUAL DA MULHER FEIA

MARIA CLAUDIA TAJES


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Orelhas do livro

Orelha esquerda:

A Claudia Tajes escreve bem pra caramba.

A Claudia Tajes uma das escritoras mais engra蓷das que apareceram nos
timos tempos. "Escritoras" n緌. Ela um dos escritores mais
engra蓷dos que apareceram nos timos tempos.

A Claudia Tajes tem o poder de criar personagens impag嫛eis, coisa que
pouqu疄sima gente sabe fazer. E n緌 faz isso ocasionalmente. A Claudia escritora proficua: este o seu quinto livro. Todos os anteriores - Dez
quase amores, As pernas de 猳sula, Dores, amores & assemelhados e Vida
dura - s緌 uma del獳ia.

A Claudia Tajes fala de assuntos do cotidiano. O leitor rapidamente se
identifica com a leveza do texto, mas ela n緌 fala apenas de assuntos do
cotidiano. Tem uma maluquice nas hist鏎ias da Claudia, tem sempre uma
doideira espreita nas entrelinhas, que, ao meu ver, o que realmente
mexe com o leitor - a leveza de forma, n緌 de conteo.

Al幦 de tudo isso, a Claudia Tajes uma maravilha de pessoa. A
aut瘽tica gente fina, O que n緌 assunto para uma orelha. Mas nem sde
orelhas feita a vida.

Boa leitura: A vida sexual da mulher feia hilariante. Eu li no avi緌 e
passei a maior vergonha. Todo mundo do v璺 ficou se perguntando quem era
o maluco que n緌 parava de rir na poltrona 8C.

Marcelo Pires.

___

Orelha direita:

Claudia Tajes nasceu em Porto Alegre, em 1963. Redatora publicit嫫ia,
estreou na literatura com Dez quase amores (2000, L&PM). Para a
escritora C璯tia Moscovich, a autora demonstra, desde a estr嶯a, "uma
habilidade espantosa para desencavar a gra蓷 do seio da desgra蓷".
Outras obras: Dores, amores & assemelhados, As pernas de 鈜sula (ambos
em 2002, L&PM) e Vida dura (2003, Maneta).


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AGir

Copyright 2005 by Maria Claudia Tajes


Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998


Capa
Rafael Bohrer


Foto da capa
Raul Krebs/Estio Mutante


Copidesque
Paulo Corr獪


Revis緌
Isabella Leal
Rachel Agavino


Produ誽o editorial
Felipe Schuery


Assistente editorial
Ma甏a Alves


CIP-BRASIL. CATALOGAЫO NA FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.


T141v


Tajes, Claudia

A vida sexual da mulher feia / Claudia Tajes. - Rio de Janeiro: Agir, 2005

ISBN 85.220.0705.X


1. Mulheres - Condi踥es sociais. 2. Mulheres - Comportamento sexual.
3. Beleza feminina (Est彋ica). 4. Imagem corporal em mulheres. - Corpo e
mente. 1. T癃ulo.
05-2919. CDD 305.42
CDU 316.346.2-055.2




Todos os direitos reservados
AGIR EDITORA LTDA - uma empresa Ed甐uro Publica踥es
Rua Nova Jerusal幦, 345 - CEP 21042-235 - Bonsucesso - Rio de Janeiro - RJ
tel.: (21) 3882-8200 fax: 3882-8212/8313



Para Mirian Tajes,
uma mulher muito bonita.






SUMARIO
1. Apresenta誽o 9
2. As teses da mulher feia
2.1 O nome 11
2.2 A cria誽o 11
2.3 Apsiqu 13
3. O amadurecimento da mulher feia
3.1 A descoberta 14
3.2 O primeiro beijo 21
3.3 O defloramento 24
4. Breve hist鏎ico dos amores da mulher feia
4.1 Vis緌 geral 29
4.2 R鏏son 31
4.3 Tiaraju 39
4.4 Augusto 53
4.5 Otelo 58
4.6 An獼imo Um 69
4.7 Zico 74
4.8 David 86
4.9 An獼imo Dois 101
4.10 Rocha 110
5. Conclus緌 121
Agradecimentos 133





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1. APRESENTAЫO



EU SOU AQUELA QUE, quando cruza a sala a caminho da
xerox ou levanta para pegar cafna garrafa t廨mica, ouve
dois colegas do escrit鏎io falando em voz supostamente
baixa: "Entre a Tu e a morte, quem vocescolheria?"
Eu sou o que todo mundo chama de mulher feia. N緌
muito feia, tipo de mulher que, segundo alguns, tem los
seus encantos. Cansei de ler que Cle鏕atra era muito feia, e
ainda assim teve Jio C廥ar e Marco Ant獼io e mais
centenas de homens que quis. Mas claro que ser rainha devia
facilitar um pouco as coisas.
Nas festas de fim de ano da empresa, quando todas as
garotas ganham algum pr瘱io, A Melhor Bunda, A Melhor
Boca, Os Melhores Peitos, As Melhores Coxas e outros
reconhecimentos que n緌 dependem de dedica誽o ou esfor蔞 -
sde Deus e, eventualmente, de um professor de gin嫳tica -,
eu sou aquela que nunca leva nada. O Melhor Pesco蔞 jme
deixaria satisfeita. Ou ent緌 As Melhores Orelhas. O Melhor
Nariz eu jamais ganharia, o meu um tanto grande para os
padr髊s da sociedade atual. Talvez as coisas fossem
diferentes se eu tivesse nascido na 廧oca da Cle鏕atra.
Eu sou aquela que muda o cabelo e sempre fica pior, que
sai de roupa nova e ningu幦 repara, que passa festas
inteiras fingindo que dan蓷 com os amigos, quando na verdade

8 9

estdan蓷ndo sozinha. O que poucos sabem que, para
mim, tudo isso tem uma finalidade cient璗ica: jfaz algum
tempo que estudo a sexualidade da mulher feia, assunto
que, atonde posso lembrar, jamais foi abordado pelas
revistas femininas, pelos programas para donas de casa no
meio da tarde, pelos livros de auto-ajuda.
importante deixar claro que o objeto das minhas
observa踥es sou eu mesma, embora existam pontos em
comum entre as experi瘽cias aqui descritas e as de outras
mulheres, todas feias, evidentemente. Hist鏎ias que ouvi
desde pequena nas conversas da minha fam璱ia, nas
confid瘽cias das amigas, nas vezes em que escutei sem querer e
quando fiz for蓷 para escutar, nos banheiros plicos, nos
獼ibus estourando de gente e nos bares lotados de mo蓷s e
velhas tristes.
Os cap癃ulos a seguir se referem a tudo isso e me
levaram a concluir, ao fim do meu estudo, que a mulher feia n緌
apenas uma deforma誽o da est彋ica.
A mulher feia um estado de esp甏ito.



2. AS TESES DA MULHER FEIA


2.1 O nome


OS PAIS DE uma menina rec幦-nascida n緌 podem
imaginar que um dia ela se transformarem mulher feia. Mas
talvez seguindo algum instinto, eles dificilmente dar緌 filha
um nome bonito.
N緌 existe mulher feia chamada Nicole e raramente
uma delas atenderpor Jia, Let獳ia, B嫫bara, Yasmim. Em
compensa誽o, s緌 incont嫛eis as Crisleines, Rosineides,
Greicelanas, Claudiomaras e todos os nomes que unem outros
dois, ou attr瘰, num ico, e in嶮ito, substantivo pr鏕rio.
Eu mesma fui registrada como Jucianara e, nas vezes em que
reclamei com a minha m綣 por me chamar assim, ela respondeu:
- N緌 poderia haver nome que combinasse mais com
voc



2.2. A cria誽o

Come蔞 este cap癃ulo ignorando minha inf滱cia por
considerar que toda crian蓷 bonita, embora n緌 parecesse

10 11

ser essa a opini緌 de meus colegas, amigos, parentes em
geral, irm緌s e pais. Minha avmaterna n緌 cansava de
elogiar minha meiguice, ao mesmo tempo que falava da beleza
dos outros netos. Hoje entendo isso como um pr瘱io de
consola誽o, semelhante minha maior gl鏎ia escolar, quando
fui coroada Miss Simpatia. Categoria de premia誽o que
conta muito mais com a compaix緌 dos jurados que com os
atributos das concorrentes.
Sada inf滱cia levando todos os quilos que deveriam
ter ficado nos parques e pracinhas por onde pulei e corri.
Muitos se juntaram 跲ueles durante o meu
desenvolvimento e, dos onze aos dezessete anos, posso dizer que
aumentei muito mais em volume do que em estatura - padr緌
que conservaria ao longo da vida.
Minha pele, meus cabelos, minha boca, minhas pernas
nunca se pareceram com essas mesmas partes que, desde
muito cedo, vi nos comerciais de sabonetes, cremes e
shampoos. E ainda que, eventualmente, eu aplicasse os tais
produtos, isso nunca melhorou minha apar瘽cia. Meu cabelo
continuou indom嫛el, crescendo para cima e para os lados.
Minhas pernas n緌 ficaram longas e lisinhas. Meus seios,
que de incipientes logo passaram a inconvenientes numa
廧oca em que o silicone ainda n緌 dominava o mundo,
continuaram sofrendo a a誽o da gravidade dia ap鏀 dia.
Finalmente, minhas espinhas n緌 desapareceram com os
cosm彋icos oleosos que deveriam me deixar mais bonita. Talvez
tenham mesmo aumentado e se tornado resistentes a todos
os tipos de tratamentos, verdadeiras espinhas-mutantes,
como eu as chamava.
Complementando o quadro, um guarda-roupa sem
nenhuma influ瘽cia da moda determinava o meu estilo. As
roupas escolhidas pela minha m綣, sempre cal蓷s e
camisas, com certeza cairiam melhor em qualquer um dos meus
irm緌s. As demais eram doadas por uma prima mais velha, o
que me obrigava a andar sempre um outono/inverno/
primavera/ver緌 atr嫳 das tend瘽cias em uso. Se as mulheres
desfilassem pantalonas, eu estaria com as cal蓷s justas que
minha prima n緌 queria mais. Quando as garotas vestissem
minissaias, eu, qual uma mu蓰lmana radical, me cobriria
com longas saias vindas diretamente da esta誽o passada.
Preciso acrescentar que o fato de a minha fam璱ia de
classe m嶮ia baixa n緌 ter condi踥es financeiras ou mesmo
informa誽o para permitir que eu me vestisse com mais acerto
n緌 contribuiu, decisivamente, para piorar minha apar瘽cia.
Lembro de uma colega de aula muito feia, Andremara, filha do
dono de uma revenda de autom镽eis, que a cada dia desfilava
modelos vindos diretamente das lojas que eu mais admirava.
Longe de valorizar o investimento do pai, as roupas apenas
real蓷vam o mau aspecto da garota atarracada e baixinha,
atraindo, ainda, a inveja das outras colegas. Com exce誽o de
mim, todas mais bonitas. Como eu, todas mais pobres que ela.
No dia em que foi aula vestindo um macac緌 de
inspira誽o espacial, semelhante ao que uma atriz da novela das
sete havia usado alguns dias antes, Andremara recebeu o
apelido de Salsich緌 do Futuro. E, atsair da escola chorando, no
fim do ano, nunca mais foi chamada por outro nome.


2.3. A psiqu
Em qualquer situa誽o, a mulher feia sempre aquela
que mais rapidamente se sentirvontade. Este fen獽eno,

12 13

observado nos mais diferentes grupos, eventos, encontros e
ocasi髊s sociais, pode ser explicado com a ant癃ese do que o
marketing e as revistas de celebridades proclamaram como
norma principal nos nossos dias: a mulher feia n緌 precisa
cultivar a pr鏕ria imagem.
Tomemos o exemplo de uma festa.
Enquanto a mulher bonita chega cercada por certo
mist廨io, economizando nos sorrisos e nas palavras, a mulher
feia se desvenda logo na entrada, cumprimentando os
convidados um a um e distribuindo sorrisos atpara os
seguran蓷s. certo que ela se abra蓷ra v嫫ios dos homens e
mulheres presentes, independentemente de seu grau de intimidade
com eles, declarando seu apre蔞 e gritando perguntas que
exigiriam mais privacidade e proximidade para as respostas.
Toda mulher feia se diverte como se cada festa fosse a
tima.
Presen蓷 confirmada nas rodinhas, forma踥es criadas
para as sem-par e as sem-esperan蓷-de-conseguir-um
dan蓷rem ato amanhecer, ela n緌 se furta a executar passos de
mambo, salsa, samba, macarena, ax pagode, remelexo,
fandango, forr boi-bumb frevo e demais dan蓷s
populares. Nessa mesma ocasi緌, a mulher feia mostrartamb幦
outra das suas caracter疄ticas, a generosidade, atraindo
para a rodinha mais mulheres feias que, por alguma raz緌,
ainda se mantenham sentadas.
A solidariedade tamb幦 um tra蔞 marcante da esp嶰ie.
Sempre disposta a ajudar, a mulher feia ocupa seu
tempo livre executando tarefas de diversas naturezas para
parentes, amigos, colegas, vizinhos e simples conhecidos:
entrar em filas, pagar contas, visitar doentes que nunca viu,
resolver pend瘽cias em bancos, credi嫫ios, companhias de

墔ua e eletricidade, lavanderias, sapatarias, lojas e afins,
fazer carn瘰 em seu nome para terceiros, acompanhar
vel鏎ios e enterros de desconhecidos que ela chora como se
fossem queridos, desembara蓷r documentos, telefonar para
obter informa踥es e libera踥es, pedir gra蓷s e cumprir
promessas. A n緌 ser nos casos em que, ao fracasso est彋ico, se
associar tamb幦 o amargor da alma, por certo decorrente
do primeiro, a mulher feia sersempre descrita como
prestativa, simp嫢ica, confi嫛el, boa-pra蓷, sser humano
exemplar e grande companheira.



14 15



3.0 AMADURECIMENTO DA MULHER FEIA



3.1. A descoberta

ANTES DE TOMAR consci瘽cia da sua feia, a mulher feia
vai, invariavelmente, descobrir o amor.
Fiz esta constata誽o ainda no prprim嫫io, primeira
experi瘽cia de conv癉io com crian蓷s da minha idade. Mais
de trinta anos depois, lembro com exatid緌 das folhas com
desenhos dos alunos coladas pelas paredes, do cheiro da sala -
mistura de tinta, cola e uniformes suados -, da professora
ruiva que quase n緌 me dava aten誽o, sempre ocupada com
as meninas bonitinhas da classe, da minha melhor amiga,
uma gorducha estr墎ica chamada Lucilei. E dele, Artur.
Artur era loiro, com olhos cor de mel, muito mais
parecido com um pr璯cipe que o ator mirim contratado para este
papel no quadro "Boa noite Cinderela", do Programa S璱vio
Santos. Numa 廧oca em que os Simpsons e Bob Esponja
jamais seriam entendidos pelas fam璱ias brasileiras, meus
pais, irm緌s e eu nos reun燰mos na frente da televis緌 para
ver uma garota pobre ganhar bonecas, bicicleta, vitrola,
brinquedos e mais o que me parecia uma montoeira de
pr瘱ios, sn緌 sei ao certo depois de fazer o qu Nada que

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envolvesse pedofilia, acho. Pois Artur, o pr璯cipe, sentava
na mesma mesa que eu, a cadeirinha quase encostada na
minha, e vlo sempre ali me fez perceber que a minha curta
vida stinha sentido perto dele.
Comecei a pedir para chegar mais cedo ao col嶲io, e mais
cedo, e mais cedo, a ponto de almo蓷r de p com a merendeira
jnas costas, para sair t緌 logo o primeiro adulto cruzasse os
talheres. Geralmente era meu pai, que, contrariado, levantava
da mesa 跴 pressas para me deixar na porta da escola ainda
fechada. Eu n緌 me importava de esperar ali, sozinha, atque
as crian蓷s come蓷ssem a chegar, a maioria delas
praticamente empurrada para dentro dos port髊s. Assim eu veria
Artur desde que sua cabe蓷 dourada surgisse na rua, e
aproveitaria essa vista ata campainha que anunciava o fim das
aulas ser tocada pela diretora da escola, mulher de feia
indiscut癉el. E ent緌 Artur desapareceria, levado pelas m緌s
de uma m綣 t緌 loira quanto ele.
Mesmo antes de saber que o que eu sentia era amor,
cumpri, passo a passo, a sina de uma feia apaixonada.
Tentando conquistar Artur, passei a entregar a ele
minha merenda, em um primeiro momento, e meus brinquedos,
logo depois. Ioi bola de gude, pega-varetas, baralho do
Batman, anel do Batman, cinto do Batman, domin cinco marias.
Tudo que coubesse nos meus bolsos ou na minha merendeira
foi transferido para Artur. Minha m綣 pensou que eu, em um
ataque de desatino infantil, tivesse quebrado todos os meus
brinquedos e escondido as provas. Neguei ato fim, o que
n緌 evitou que ela me batesse com o Vermelh緌, um chinelo
gasto de borracha vermelha que ficava pendurado
permanentemente na 嫫ea de servi蔞, espera de que algum dos filhos
sa疄se da linha. Quando ssobraram algumas bonecas e
panelinhas no meu quarto, recorri ao acervo dos meus irm緌s
para continuar presenteando Artur. Atmesmo uma revista
de mulher pelada que Everton, o mais velho, escondia com
todo o cuidado na gaveta do meio da c獽oda virou
propriedade de Artur. Lembro da surpresa do garoto quando recebeu
o presente.

- Para voc

- O que

- Sei l mas o meu irm緌 adora. Tem mulher pelada.

- Mulher pelada?

- Como a sua m綣 sem roupa. Olhe e vocvai entender.

O resto da tarde Artur passou vendo a revista, por certo
imaginando a m綣 t緌 nua quanto a modelo das fotos. 龍
vezes penso no que pode ter acontecido a partir da Artur, de
quem nunca mais tive not獳ias, desprezando as muitas
mulheres que com certeza o quiseram, tenha ele continuado
como o pr璯cipe loiro do meu passado ou n緌, para sempre
apaixonado pela imagem da primeira mulher de pernas
abertas que viu. Em seu imagin嫫io, a m綣.

Numa tarde em que a turma fazia colagens com papel
colorido, cortei caprichosamente um cora誽o cor-de-rosa e
escrevi nele a letra A, a ica que eu sabia 廧oca, por sorte a
inicial do meu amor. Mostrei para Artur, que olhou de
qualquer jeito e continuou fazendo seu pr鏕rio trabalho.

Insisti.

- para voc

- Eu n緌 quero um cora誽o rosa.

Aos seis anos, n緌 sei de onde tirei coragem para dizer.

- Mas tem a letra A. de Artur. porque eu gosto de voc

- N緌 quero que vocgoste de mim. Vocfeia.

18 19

Artur encerrou o assunto e voltou sua colagem,
enquanto a gorda Lucilei interrompeu o recorte de uma flor toda
torta para me informar:
- Ele chamou vocde feia.
Rasguei o cora誽o de papel e n緌 disse mais uma
palavra. Em casa, a cabe蓷 apoiada no colo da minha m綣, falei o
que atormentava meu cora誽o de carne, igualmente rasgado.
- O Artur da minha aula me chamou de feia...
Minha m綣 permaneceu quieta, a m緌 alisando os
cabelos duros e crespos que me nasciam na testa.
- Ele me chamou de feia...
- E o que mais vocfez na aula hoje?
O sil瘽cio constrangido da m綣 ficou, em todas as
minhas recorda踥es, durante toda a minha hist鏎ia, pela
minha vida inteira, como um atestado de feia assinado e
reconhecido pela autoridade mais competente. Ou mais
incompetente, considerando a parte fundamental que os
genes dela desempenhavam na minha trag嶮ia est彋ica.
- Ele me chamou de feia...
- Shhhhhh, querida, a novela come蔞u.
A partir de ent緌 passei a me classificar como feia, n緌
de maneira depreciativa, mas para retratar minha principal
caracter疄tica, da mesma forma que algumas garotas se
descreviam como loiras, ou altas, ou com olhos azuis. Mas claro
que eu teria preferido ser uma loira alta de olhos azuis, se me
fosse dada a oportunidade de escolher.
Est嫛amos perto do fim do ano e meus progressos com
Artur se limitavam 跴 palavras que eu dizia quando entregava a
ele meus pertences. Um dia o garoto n緌 foi aula, e no outro
tamb幦 n緌, e nem no outro. Tr瘰 ausencias consecutivas que
me deixaram ausente de tudo, sem vontade de pintar o ursinho
peludo ou recortar o c緌zinho mimoso, como queria a
professora. Ent緌 a m綣 de Artur apareceu para contar que a fam璱ia
estava de mudan蓷 para o interior e que o filho n緌 voltaria escola. Ela entregou para a professora ruiva uma grande sacola
transparente em que todos os presentes dados por mim se
mostravam e se misturavam, e agradeceu a gentileza da amiguinha
que havia emprestado tantos brinquedos para Artur.
Voltei para casa rebocada por nossa empregada, ela
carregando os brinquedos, eu sem vontade de caminhar. Em
casa, minha m綣 espalhou o conteo da sacola no ch緌 e aos
poucos minhas antigas propriedades foram voltando a seus
lugares nas prateleiras. Assim como as de meus irm緌s.
- Meu pe緌! Por que voclevou meu pe緌 para a escola?
- Meu Matchbox* de corrida! Eu apanhei com o
Vermelh緌 porque a m綣 achou que eu tinha perdido!
Aos gritos, meus irm緌s foram reavendo os brinquedos
que durante meses eu levei para Artur. Sfaltou a revista de
mulher pelada, que Artur n緌 devolveu, e pensei na minha
sorte, afinal, Se o pequeno pronanista n緌 tivesse ficado com
a revista, eu sofreria duplamente as conseqncias do roubo,
na m緌 de meus pais e do meu irm緌 Everton.
Para encerrar o caso, minha m綣 me bateu com o
Vermelh緌, mas sburocraticamente. Ou ent緌 fui eu que n緌 senti,
com tudo o que a minha alma do燰.


3.2. O primeiro beijo

Antes de ser uma mulher feia, eu era uma adolescente
feia. N緌 vou me ater aqui - atpor n緌 haver quem n緌 os

___

* Marca de carrinhos de brinquedo (N. do T.)

20 21

conhe蓷 - aos desatinos hormonais que ocorrem nesse
per甐do e que se traduzem em espinhas, excesso de peso, cheiros
塶idos e uma tristeza t緌 grande que quase um milagre as
estat疄ticas n緌 apontarem neros mais expressivos de
adolescentes suicidas. Sgostaria de observar que, para algumas
pessoas, as espinhas, o excesso de peso, os cheiros 塶idos e a
tristeza n緌 passar緌 quando essa fase chegar ao fim.
Foi o meu caso.
Eu tinha ent緌 quinze anos e gostava de um garoto que
era meu colega desde a segunda s廨ie do prim嫫io. Gostava
n緌 conta exatamente o que eu sentia: eu amava, idolatrava,
sonhava, esperava, desejava e, como pr鏕rio da idade,
tamb幦 me masturbava com a simples lembran蓷 dele. Ao
contr嫫io de mim, Paulo Andr como se chamava o meu colega,
estava atravessando a puberdade sem perder o aspecto
humano, e era, sem dida, o cara mais bonito da escola. Mesmo
com grande parte das meninas do col嶲io igualmente
apaixonadas por ele, decidi que Paulo Andrseria o primeiro homem
a me beijar. E que minha boca n緌 descansaria enquanto n緌
soubesse o gosto de sua boca.
A conquista de Paulo Andrse revelou um fracasso.
Embora nunca tenha repetido o ano, eu n緌 era uma aluna
inteligente o bastante para que algu幦 quisesse colar de
mim nas provas. Paulo Andrn緌 quis, apesar dos meus
oferecimentos, e o plano de me aproximar dele por meio de um
desempenho invej嫛el em matem嫢ica deu em nada. Nos
anivers嫫ios que se seguiram, os poucos para os quais fui
convidada, ele n緌 dan蓷ria comigo e com minhas cal蓷s de
tecido listrado, mas com todas as outras garotas de cal蓷
Lee. Embora eu implorasse por uma daquelas, minha m綣
achava deselegante ir a festas usando jeans. E, no tempo a
que me refiro, era a m綣 quem mandava, quando voctinha
quinze anos.
Quando fiz dezesseis, Paulo Andrnamorava uma
menina da nossa turma havia alguns meses, o que me fez ficar um
pouco mais feia, eu que vivia com o rosto inchado de chorar.
Foi ent緌 que Renan, meu primo, uma das raras pessoas do
mundo capaz de fazer sombra 跴 minhas espinhas, confessou,
no port緌 de casa, que me adorava desde a nossa inf滱cia.
Deixei que Renan me beijasse por pena, sn緌 sei se
dele ou de mim. A l璯gua do meu primo era 嫳pera e passei
todos aqueles segundos, que hoje sei terem sido muito
breves, com a sensa誽o de que o gato de estima誽o da minha
m綣, um bicho gordo e velho chamado Sininho, estava me
beijando na boca.

Depois disso Renan saiu correndo e n緌 apareceu mais,
nem na noite seguinte, quando o esperei no port緌, nem nos
almo蔞s de fam璱ia, nos anivers嫫ios de parentes ou no Natal.
A m綣 dele, minha tia, justificava as aus瘽cias alegando que
o filho praticamente n緌 sa燰 mais do quarto, estudando para o
vestibular. Mas eu sabia que o desaparecimento do meu
primo estava relacionado ao nosso beijo. E chorava.

Chorei tanto que acabei esquecendo Paulo Andr
Naqueles dias, minha boca, em plena adolesc瘽cia, jn緌
conservava ilus髊s sobre sentir o gosto de um homem t緌 bonito.

Voltei a ver meu primo muitos anos mais tarde, no
casamento dele com uma loira classificada no terceiro lugar de
um concurso de modelos. Quis perguntar o que o fez fugir
naquela noite, mas n緌 houve tempo. Renan, que jn緌 tinha
espinhas, apertou formalmente minha m緌 e logo dirigiu sua
aten誽o ao casal atr嫳 de mim na longa fila de cumprimentos.


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3.3. O defloramento

Mulheres costumam esconder sua primeira vez no sexo.
Com as mulheres feias a tend瘽cia acontecer o mesmo, com
uma diferen蓷: no caso delas, o deflorador quem prefere
evitar a divulga誽o do fato.
Marcos era o irm緌 de um colega do terceiro ano, a ica
pessoa do sexo masculino que parava para conversar comigo
na rua. Todas as outras, incluindo meu pai e meus dois irm緌s
mais velhos, limitavam-se a um movimento de cabe蓷, isso
quando fosse totalmente imposs癉el evitar o cumprimento.
Era uma tarde quente e eu havia ido ao supermercado
perto de casa comprar jujuba. Quando lembro dessa 廧oca,
todas as minhas recorda踥es v瘱 com gosto e cheiro de
jujubas. Eu era capaz de comer trinta pacotes por dia, tinha
compuls緌 por elas. Talvez fosse mais honesto dizer que ainda
tenho e que, 跴 vezes, chego a ir ao cinema apenas para pedir, na
bomboni廨e da entrada, antes mesmo de comprar o ingresso:
um pacote com muitas jujubas vermelhas, por favor.

- N緌 me oferece?

Avoz atr嫳 de mim era de Marcos. Estava t緌 preocupada
com as balas que n緌 o vi no supermercado. Mas ele me
alcan蔞u na rua e agora eu era for蓷da a oferecer minha tima
jujuba, justamente uma vermelha, a maior e mais cheia de
a踖car, reservada com cuidado para o granfinale do pacote.
Caminhamos lado a lado sem falar, o sil瘽cio cortado pelo
barulho de saliva que Marcos fazia ao chupar a jujuba. Ent緌,
depois que ouvi o som da minha bala descendo pelo tubo
digestivo dele, minha bala prestes a ser desintegrada pelos 塶idos de
outro est獽ago, uma pergunta me surpreendeu.

- Vamos ver televis緌 no meu quarto?

Era a primeira vez que um cara queria a minha
companhia para alguma coisa, ver televis緌 trancado no quarto, que
fosse. Cheguei a esquecer a tristeza pela jujuba perdida.

- Vamos, claro. Sespere um segundo para eu avisar
minha m綣.

- Melhor n緌 dizer nada. Daqui a pouco vocvolta e
pronto.

Fiquei encantada com a determina誽o de Marcos e a
sensa誽o de ser dominada por uma vontade mais forte e mais
poderosa. Desconsiderando as ineras oportunidades em
que fui obrigada a fazer o que meu pai e meus irm緌s
mandavam, aquela foi a primeira vez em que me senti subjugada por
um homem. Uma experi瘽cia que dali em diante se repetiria
sempre. na minha trajet鏎ia de mulher feia.
Marcos abriu a porta de casa com pressa. Em seguida,
fechou todas as cortinas e procurou a presen蓷 improv嫛el de
algu幦 em cada c獽odo. 默uela hora, tr瘰 da tarde, seus pais
estavam no trabalho, o irm緌 provavelmente fumava
maconha com algum amigo, e a empregada jsacolejava em um
獼ibus rumo periferia. Sentei na beirinha da cama enquanto
ele dava duas voltas na chave.

- Para garantir que nada vai nos atrapalhar.

Marcos ligou a TV e sentou ao meu lado na cama, me
abra蓷ndo pelas costas. Naquela 廧oca eu estava um tanto
mais larga que hoje, o que o levou a esticar bem os bra蔞s para
completar minha circunfer瘽cia.
Tentando manter os olhos fixos na reprise de um dos
epis鏚ios de Skipy, o Canguru Amestrado, a que ainda ontem eu
assistia ao lado da minha m綣, na inocente sala da nossa casa,
senti a orelha subitamente inundada por algo mole e ido.
Demorei alguns segundos para perceber do que se tratava, a

24 25

l璯gua de Marcos, ainda mais viscosa devido aos res獮uos de
jujuba que certamente se acumulavam nela. Da orelha a
l璯gua passou rapidamente para a minha boca, n緌 sem antes
deixar sua marca pegajosa em todo o meu rosto.
Satisfeita por provocar os sons altos e roucos que
Marcos emitia, concordei quando minha m緌 foi guiada para o
meio das pernas dele. O que agora eu segurava htempos era
o principal tema dos meus assuntos com outras garotas,
todas feias, jque as bonitas n緌 me aceitariam em suas
turmas. Convers嫛amos durante horas sobre ELE, nossa
curiosidade maior, o grande mist廨io do mundo, talvez n緌 t緌
grande, no caso de Marcos. Eu precisaria viver mais para
avaliar aquela estrutura carnosa, fina e dura, com tufos de p瘭o
que teimavam em se enroscar no meu anel em formato de
cora誽o.
Em poucos segundos, a m緌 cedia lugar para a minha
cabe蓷, firmemente empurrada naquela dire誽o. Havia
muitos cheiros ali, todos t緌 desconhecidos quanto identific嫛eis:
jogo de futebol no intervalo da aula, suor do meio-dia, a Coca-Cola
n緌 aproveitada pelo corpo. Ainda me entretinha com
essas descobertas quando minha bermuda com el嫳tico na
cintura foi puxada perna baixo. N緌 sei de onde me veio a
coragem para revelar a Marcos minhas intimidades atent緌
jamais expostas. Pena ter que mostrar tamb幦 minha barriga
saltada e branca.
Foi tudo muito r嫚ido. Doeu um pouco, e mais nada.
Marcos levantou e disse para eu me vestir. Fiquei de bunda
para cima procurando a bermuda, que sachei minutos
depois, toda enrolada embaixo da cama.
Continuamos com aquilo pelos meses seguintes. Depois
de comprar o pacote de jujubas, que passou a ser repartido
em duas por踥es iguais, eu corria para o quarto de Marcos.
Alguns caras da vizinhan蓷 come蓷ram a especular sobre o
que acontecia l mas nem os meus irm緌s deram
import滱cia. Em respeito minha reputa誽o, ou sua pr鏕ria, Marcos
negou o boato com convic誽o.
Um dia, assim que saiu de cima de mim, ele me falou que
estava gostando de uma garota do col嶲io e que dev燰mos
parar de nos encontrar. Respondi que aceitaria dividi-lo
sempre que fosse preciso e que, por mim, seguiria tudo igual. Uma
leg癃ima frase de mulher feia que, sem saber, eu usava pela
primeira vez.
Marcos n緌 quis.
Chorando rua acima, jem busca de uma desculpa para
explicar em casa tanto desespero 跴 quatro horas de uma
ter蓷-feira, meu consolo era saber que, a partir daquela tarde,
eu nunca mais dividiria minhas jujubas com ningu幦.


26 27



4. BREVE HIST紑ICO DOS AMORES
DA MULHER FEIA



4.1. Vis緌 geral

ALGUMAS MULHERES feias compensam a falta de dotes
f疄icos com o grande desenvolvimento de sua capacidade
intelectual. Como resultado, tornam-se profissionais brilhantes em
qualquer 嫫ea em que atuem, das cient璗icas 跴 human疄ticas.
Em casos espec璗icos, isso tem contra-indica踥es. O fato de o
feminismo, em seu in獳io, ter como uma de suas principais
mentoras uma feia, a americana Betty Friedan, fez com que,
durante muito tempo, o movimento fosse visto como produto
das frustra踥es de mulheres mal-amadas. A entrada em cena
de Gioria Steinem, feminista loira, bonita e gostosa,
certamente azedou ainda mais o rosto e a alma de Betty, ao atrair
para uma militante menos preparada filosoficamente, por幦
milh髊s de vezes mais bem acabada esteticamente, todas as
aten踥es da imprensa e da sociedade.
Sabe-se que Betty, agora longe dos temps de
celebridade, faz palestras pelo mundo em companhia de um homem
pequeno, calado e sem brilho, que muitos sup髊m ser seu
marido. E o que levaria uma mulher fulgurante como Betty a
andar com um homem assim, se n緌 fosse a pr鏕ria feia?

28 29

Mulheres feias costumam se envolver com os caras
menos indicados pelo bom senso. Casados, desempregados,
trabalhadores mal remunerados, problem嫢icos em geral,
todos viram excelentes partidos, dependendo da solid緌 de
quem os acolhe. Uma corrente defende que selecionar mal os
parceiros n緌 seria prerrogativa das feias, mas das mulheres,
como esp嶰ie.

Concordo em parte. Com as feias, o quadro sempre
potencializado.

Squem sentiu na pele a dor de ser sempre preterida por
outra, qualquer que fosse a outra, pode avaliar a import滱cia do
galanteio dirigido pelo marido beberr跢 da vizinha do 401. Se ele
continuar com as gracinhas sempre que a mulher feia atravessar
o sagu緌 do pr嶮io com suas sacolas de supermercado e seus
sapatos de salto baixo, tem grandes chances de virar seu amante.
Alista de candidatos, nesse caso, imensa.
- O rapaz com dois ou tr瘰 dentes faltando que entrega
folhetos no sinal de tr滱sito.
- O policial (casado, como a mulher feia saberjno
motel) contratado para fazer a ronda na quadra do pr嶮io em
que ela mora.
- O homem que instala TV a cabo pirata.
- O genro do zelador do pr嶮io em que a fam璱ia passa as
f廨ias desde que a mulher feia era menina.
- O ex-colega gordo que repetiu quatro vezes a s彋ima
s廨ie; um que, por ordem do pai militar, usava o cabelo quase
raspado, reencontrado por acaso em uma parada de 獼ibus,
gordo como sempre e ainda careca, agora por raz髊s alheias vontade dele ou do pai.
- O dono do armaz幦 da outra quadra, com a barriga
sempre para fora da cal蓷 e a esposa no caixa.
- O motorista do 獼ibus que ela pega sempre na mesma
hora, sincero o bastante para confessar outras v嫫ias
namoradas ao longo do trajeto e do dia.
- O advogado rec幦-separado depois de vinte e cinco
anos de casamento. Fuma muito, tem ins獼ia e problemas de
ere誽o. Terminarvoltando para a fam璱ia depois de a mulher
feia passar noites e noites acordada, tentando o sexo oral
para reanimlo.
muito prov嫛el que a mulher feia passe a vida inteira
pulando de desamor em desamor, enquanto pensa ser amada.
Ao mesmo tempo, seria muito preconceituoso afirmar que
apenas as feias est緌 condenadas a love stories de segunda
categoria: muitas das bonitas tamb幦 gastar緌 seus
melhores anos e esperan蓷s em romances tristes e equivocados.

A diferen蓷 que elas t瘱 mais escolhas.

importante ressaltar a grande capacidade de
supera誽o da mulher feia. Cada relacionamento desfeito serve de
incentivo para um pr闛imo e assim por diante. caracter疄tica da mulher feia n緌 ficar sozinha por longos per甐dos,
dividindo sua feia com quem se disponha a acordar com ela.

A seguir, sem ordem cronol鏬ica, alfab彋ica ou mesmo
moral, relato algumas das hist鏎ias que vivi, como ilustra誽o
para a minha tese.



4.2. R鏏son

Morei no mesmo endere蔞 desde que me entendo por
gente, dividindo uma casa de tr瘰 quartos, constru誽o de
alvenaria, com meus pais e dois irm緌s mais velhos.

30 31

Everton e Emerson, meus irm緌s, tinham apenas onze
meses de diferen蓷 e passaram a inf滱cia e a juventude aos
socos. Everton acusava Emerson de ter usurpado seu lugar de
filho ico, e Emerson transferia a culpa para nossos pais e
sua pressa reprodutiva. Everton, em seguida, chamava minha
m綣 para contar que Emerson culpava a ela pela infelicidade
da fam璱ia Costa. A quest緌 era invariavelmente resolvida
pelo Vermelh緌, o chinelo de borracha pendurado na 嫫ea de
servi蔞. Ele encerrava, de forma instant滱ea, nossas brigas e
discuss髊s, e deixava as bundas de Everton e Emerson t緌
vermelhas quanto ele.
Quando rodei pela terceira vez na oitava s廨ie, meu pai
decidiu que eu iria trocar de col嶲io.
- Spode ser o m彋odo de ensino. A menina n緌 d嶵il
mental, n鏀 fizemos os testes.
Durante a inf滱cia inteira dos filhos, meus pais suspei-
taram que todos sofressem de disritmia, uma anomalia t緌
em alta no in獳io dos anos setenta quanto a cirurgia para a
retirada das am璲dalas. Por causa disso, perdi a conta dos
eletro-encefalogramas que fui obrigada a fazer e quase posso
garantir que minha m綣 se decepcionava a cada novo
veredicto de normalidade. Jminhas am璲dalas, felizmente, foram
extirpadas uma vez s Seja como for, diante de mais um
fracasso escolar, meu pai usava a minha comprovada capacidade
cerebral para culpar a escola em que eu estudava.
Estudava, no caso, era apenas um modo de dizer.
Como tantas outras garotas feias, espinhentas, acima
do peso, de 鏂ulos fundo-de-garrafa e malvestidas, fui
sempre exclu獮a de todas as turmas escolares que freqntei,
obrigada a buscar amigos t緌 exclu獮os quanto eu para
sobreviver.
A gorda que fumava desde os dez anos de idade.
O garoto com fama de burro que, jadolescente, n緌
conseguia vencer o prim嫫io.
Os filhos de faxineiros, garis, empregadas dom廥ticas,
camel盭 e demais profiss髊s marginalizadas atmesmo entre
estudantes de col嶲ios plicos.
Todos os que usavam Conga, o t瘽is-s璥bolo dos menos
favorecidos, naqueles dias.
Pois esse era o grupo do qual eu fazia parte. Sempre
preocupados em evitar que os colegas os expusessem ao
rid獳ulo, seus membros seriam mais facilmente encontrados
no p嫢io da escola, fumando e pensando em estrat嶲ias
para fugir dos deboches dos outros colegas, do que nas
aulas de portugu瘰, geografia e matem嫢ica. Massc isso meu
pai n緌 sabia, e ent緌 eu fui matriculada em outra escola
plica, distante quatro bairros da nossa casa, o que me fez
descobrir um novo universo, cheio de aventuras e
possibilidades. O 獼ibus.
Agora eu pegava dois 獼ibus por dia, para ir e voltar da
escola, isso quando um trabalho fora do turno n緌 me
obrigava a tomar o caminho da escola em hor嫫ios alternativos.
E como eu torcia para que isso acontecesse.
No 獼ibus fiz muitas e novas amizades. Logo eu
conhecia todos os motoristas e cumprimentava um bom nero
de trabalhadores e estudantes que, como eu, sacolejavam
pontualmente no coletivo 跴 sete da manh rumo a seus
destinos.
Conversando com os motoristas aprendi que os 獼ibus
t瘱 seis marchas, que v嫫ios profissionais do volante
apresentam varizes e hemorr鏙das devido ao tempo que passam
sentados e que os bancos com revestimentos pl嫳ticos dos ve獳ulos

32 33

podiam ser usados como prova contra as companhias de
transporte em a踥es de danos f疄icos e morais, devido 跴
assaduras que costumavam provocar em seus ocupantes.
Nos 獼ibus aprendi tamb幦 que motoristas e
cobradores, a maioria deles, t瘱 diferentes namoradas nas diferentes
paradas do trajeto. Mas isso n緌 impediu que eu ca疄se de
amores por R鏏son, o cobrador bonito como nenhum outro
que, em incont嫛eis viagens de 獼ibus posteriores, cruzou o
meu caminho.
- Posso ficar devendo dez centavos?
A voz dele era um pouco mais fina do que seria de se
esperar para um homem daquele tamanho, mas a entona誽o
da pergunta tinha qualquer coisa de sensual e misteriosa.
Depois eu veria que o tamanho de Robson era na verdade uma
ilus緌 causada pela cadeira de cobrador que ele ocupava. Mas
a essa altura, sem trocadilhos, eu jestaria completamente
apaixonada.
- Claro, mo蔞. O que s緌 dez centavos, afinal?
Resposta: dez centavos era a quantia que faltava para
completar minha passagem de volta, mas eu conseguiria uma
moeda emprestada com algum colega, se tudo corresse bem.
Aproveitei que agora era credora do cobrador para falar com
ele durante o trajeto inteiro e me informar dos hor嫫ios que
fazia, e da vida que levava, e das mulheres que tinha, que ele
jurou n緌 ter. Desci depois de apertar a m緌 de R鏏son, um
tanto pegajosa devido ao of獳io de pegar dinheiros vindos dos
mais diversos bolsos suados e carteiras velhas.
- Amanhpego o 獼ibus no seu hor嫫io para a gente
continuar a conversa.
Na sa獮a do col嶲io, n緌 tendo conseguido dez centavos
emprestados, sme restou entrar no 獼ibus com o valor da
passagem incompleto e apelar para a compreens緌 de outro
cobrador, de bigode fino e maus modos.
- Posso ficar devendo dez centavos?
- Mas voc瘰 s緌 folgados, hein?
O cobrador se dirigia a mim, mas falava na primeira
pessoa do plural, como a me culpar por todos os passageiros sem
moeda que jhaviam entrado no 獼ibus. Quando desci, ainda
gritou pela janela.
- Se voc瘰 n緌 t瘱 dinheiro, caminhem!
Reencontrar R鏏son passou a ser minha miss緌. Para
cumpri-la, eu iria muitas vezes escola, nas tardes seguintes,
mentindo para minha m綣 sobre trabalhos, estudos e um
fict獳io coral, no qual eu jamais seria aceita com minha
desafina誽o cong瘽ita.
Em uma dessas tardes, debru蓷da na roleta, tomei a
iniciativa de convidlo para um cinema.
- Pode ser na minha folga, na quarta. Mas vocescolhe o
filme, que eu n緌 tenho muita id嶯a para isso.
N緌 pensei em mais nada ata quarta-feira, nem na
prova de f疄ica que eu teria e que se juntou a meus outros
fracassos estudantis. Velocidade m嫞ima, ases do volante,
Comboio, Se meu fusca falasse. Eu deveria escolher um filme
ligado ao setor automotivo ou R鏏son preferiria variar o
assunto? No dia e hora marcados, esperei por ele na frente do
cinema. Em cartaz, Uma linda mulher, sugest緌 de uma amiga,
Cleidiana, o oposto do t癃ulo a que assistir燰mos em seguida.
Quando R鏏son chegou, pude ver que t璯hamos quase a
mesma altura, mas que minha maior concentra誽o de massa
fazia com que ele parecesse bem menor. Estranho encontrar
algu幦 longe do seu ambiente natural. Fora da cadeira de
cobrador, R鏏son ficava menos altivo e mais comum, a ponto

34 35

de poder, facilmente, ser confundido com um passageiro
qualquer.

Apesar do romantismo do filme, ele n緌 me beijou e
sequer tocou na minha m緌. Nos despedimos na porta do
獼ibus que me levaria para casa.

- Foi 鏒imo, cora誽o. Qualquer hora a gente repete a dose.

Foi 鏒imo, cora誽o. Desde a experi瘽cia com Marcos (ver
em "o defloramento"), essas eram as palavras mais 璯timas
jamais ditas por um homem a mim. Mesmo que ele falasse a
uma dist滱cia respeitosa, que tanto podia indicar respeito
quanto repulsa.

Continuamos nos vendo no 獼ibus quase todas as
tardes. E depois de meses de conversas, de cinemas eventuais, de
eu fazer alguns pequenos favores para R鏏son, como pagar
contas em lojas do centro da cidade e levar as pulseiras de
prata dele para passar antioxidante em casa, tomei coragem
para dizer.

- R鏏son, estou gostando de voc

Desde a minha primeira declara誽o de amor para Artur,
meu colega do jardim-de-inf滱cia (ver em "A descoberta"), eu
havia intu獮o que mulher feia sempre cabe a iniciativa.
O homem opta por manter-se reservado, talvez seu ico
recurso para evitar uma poss癉el abordagem.

R鏏son fingiu contar algumas notas de um real
amarfanhadas e dedicou sua aten誽o aos passageiros que
acabavam de embarcar. T緌 logo eles passaram pela roleta, voltei
ao assunto.

- Ouviu? Eu estou gostando de voc

- Me espere 跴 nove no fim da linha. E agora eu preciso
trabalhar.

Eu faria qualquer coisa para estar 跴 nove da noite no
fim da linha. No caso, como minha m綣 me proibia de andar
pela rua depois de escurecer, o que fiz foi sair de casa
escondida, deixando na cama um amontoado de roupas para
simular meu suposto corpo em repouso.

Fui ato fim da linha conversando com Concei誽o, uma
das poucas cobradoras em atividade naquela companhia de
獼ibus. Sendo o trajeto longo e o movimento pequeno, pude exp皾
a ela todos os meus sentimentos e expectativas, e ouvir suas
recomenda踥es e experi瘽cias sobre a conquista de um
homem. Concei誽o era uma mulher bastante feia, com seu
cabelo comprido e maltratado de evang幨ica e um sinal no
queixo, de onde um ico e longo fio grisalho se projetava
com firmeza para o infinito. Athoje n緌 lembro de nada
parecido com aquele fio grisalho nos outros sinais que tive a
oportunidade de ver e tocar. O fato que, muito embora sua
apar瘽cia pouco compat癉el com a conquista de homens. Conceic緌
tinha quase tr瘰 vezes a minha idade, o que talvez lhe
conferisse certa autoridade para me aconselhar. O diabo sabe
porque velho e n緌 porque diabo, dizia o meu pai.

Certos conselhos de Concei誽o guardo athoje, para
usar quando algum mo蔞, ou nem tanto, se atravessa no meu
cora誽o. Mostre-se sempre menos inteligente do que voc
por menos inteligente que vocseja. Encante-se com toda
bobagem que ele falar. Sda sua opini緌 depois de ouvir a
dele. E logicamente que a sua sera mesma.

S墎ia Concei誽o. N緌 hser do sexo masculino, ao
menos na esp嶰ie humana, que resista a esses mandamentos
da bajula誽o. Durante a vida e os homens, fui aprendendo que
os efeitos da f鏎mula de Concei誽o podiam ser
potencializados com risadas entusiasmadas a cada piada ou trocadilho

36 37

proferido. Infelizmente para as mulheres, da natureza do
macho contar piadas em grandes grupos ou na intimidade da
sua casa. Ao menos na esp嶰ie humana.
Esperei com ansiedade o 獼ibus de R鏏son estacionar
no p嫢io. Est嫛amos ali eu e mais quarenta ou cinqnta
funcion嫫ios da empresa, motoristas e cobradores deixando o
trabalho, outros tantos chegando para substitulos, al幦 dos
retardat嫫ios da administra誽o. R鏏son surgiu com o cabelo
molhado, a camisa de cobrador dobrada em um saco pl嫳tico e
uma camiseta com cheiro de sab緌 em pusada para dentro
das cal蓷s com preguinhas, o cinto imitando couro tra蓷do
arrematando o conjunto.
Era o cobrador mais bonito que eu veria na minha vida
inteira.
Ele me convidou para ir na casa de um amigo que morava
perto dali, e eu fui. O amigo, um negro, baixinho e
homossexual apelidado de Minoria saiu para comprar algo ou para
nos deixar a s鏀, talvez. R鏏son tratou de cumprir sua sina em
pleno sofda sala, com uma Nossa Senhora Aparecida feita de
palha nos olhando da estante. Foi mais r嫚ido do que eu
gostaria, talvez pela preocupa誽o dele com a volta de Minoria.
Ficamos em sil瘽cio ateu perguntar se R鏏son queria
um lanche. Na cozinha pequena e organizada, fritei dois ovos
que ele comeu raspando no prato um p緌 de sandu獳he que
encontrei na geladeira. Depois R鏏son me acompanhou ata
parada e ficamos falando de futebol atque o 鰒ibus
aparecesse, n鏀 dois fan嫢icos pelo Inter de Porto Alegre.
- Um dia vou levar vocao nosso est墂io, pequenina.
Palavra do velho R鏏son.
Consegui entrar no meu quarto sem ser vista e deitei de
roupa, lembrando cada segundo da noite e cada s璱aba da
palavra que R鏏son escolheu para me acariciar: pe-que-ni-na.
Com exce誽o do meu av que me chamava de Gordalhona, era
minha estr嶯a no campo das palavras carinhosas usadas como
express緌 de tratamento.
Infelizmente, nunca fomos juntos ao Beira-Rio. Nossa
hist鏎ia durou apenas mais alguns encontros, atR鏏son
sugerir que dev燰mos esquecer o que havia acontecido e
retomar nossa amizade.
- Acredite em mim. Vai ser melhor para os dois, pequenina.
Para mim seria melhor continuar como est嫛amos, mas
n緌 houve argumento que o convencesse. A partir dali, nas
vezes em que me ofereci para acompanhlo ao apartamento
de Minoria, R鏏son sempre recusou. N緌 demorou para que uma
garota qualquer aparecesse debru蓷da na gavetinha em que ele
guardava o dinheiro, espa蔞 que eu considerava meu, o que
me obrigou a procurar outro e solit嫫io lugar para viaj ar.
Terminei gostando daquela garota e das que vieram
depois dela. Se existe coisa que uma mulher feia sabe aceitar
a derrota e reconhecer os m廨itos da inimiga. Desta forma,
cansei de consolar R鏏son quando seus casos chegavam ao
fim e de estimullo a novas conquistas no 獼ibus para
recuperar a auto-estima. Quanto a mim, estive com outros
cobradores, conheci alguns motoristas e cheguei a me interessar por
alguns fiscais. Quando tudo terminou, de todos fiquei amiga.
Como suma mulher feia seria capaz.


4.3. Tiaraju

Perto da minha casa morava uma fam璱ia vinda do
interior, nunca se soube exatamente de onde. Era a fam璱ia Tup

38 39

O pai n緌 trabalhava e a m綣 costurava para mulheres de
outras freguesias: as vizinhas jamais faziam a ela
encomendas de ticas ou pantalonas, a moda da 廧oca, embora
soubessem da sua profiss緌. Moravam em uma casa pequena,
com restos de verde, salm緌 e branco nas paredes descascadas
e nunca abriam as janelas, qualquer que fosse o tempo do
lado de fora. Chegou-se a comentar, nas conversas sussurradas
das donas de casa na cal蓷da, que os Tup綼 estavam ali
escondidos da pol獳ia, fugidos de algum crime cometido pelo pai,
raz緌 das venezianas cerradas e das suas caras, mais
fechadas ainda.
Maior que o mist廨io da fam璱ia, so nero de filhos:
oito, e todos homens. Os mais mo蔞s estudavam no mesmo
col嶲io plico em que eu fui tantas vezes reprovada,
das crian蓷s da nossa rua. Segundo contavam essas crian蓷s,
todos pareciam perfeitamente integrados ao ambiente, com
amigos, temas feitos e desempenhos muito melhores do que
eu jamais tive. Eram, no total, cinco filhos freqntando o
col嶲io, Ubiraj ara, Ubiratan, Tabaj ara, Uirapuru e Ubiraci,
nomes que levavam suspeita de fortes ra瞵es tupis-guaranis
na g瘽ese da fam璱ia.
E havia os tr瘰 filhos mais velhos, de ocupa踥es n緌-
sabidas. Um deles, Peri, sa燰 de casa antes de amanhecer e
voltava no final do dia, para n緌 mais ser visto ato sol nascer
outra vez. Oper嫫io? Enfermeiro? Ambulante? Meliante? Por
mais que especulassem, as donas de casa da nossa rua nunca
encontraram a resposta.
Outro dos rapazes, Sep aparentava vinte anos e passava
os dias na casa fechada. Quando a trilha da novela das sete
precedia a noite em todos os lares da vizinhan蓷, Sep cruzava o port緌 com uma sacola azul nas costas e desaparecia
na dire誽o da avenida que cortava nosso bairro. Enfermeiro?
Guarda-noturno? Mico? Seguran蓷? Transformista? Mais
um mist廨io que as donas de casa, curiosas, n緌 conseguiram
desvendar.
prole se completava com o primog瘽ito da fam璱ia,
Tiaraju. Baixinho e moreno, com os l墎ios escuros e os cabelos
longos e engordurados, Tiaraju passava horas intermin嫛eis
no jardim malcuidado da casa, desenhando e pintando em
telas e mais telas que, ao escurecer, eram recolhidas pela m綣
costureira. Para n鏀, os vizinhos, t緌 importante quanto
saber que mist廨ios os Tup綼 guardavam, era descobrir onde
eles armazenavam tal quantidade de quadros.
Foi em uma tarde sem aula, em que o estudo que se fazia
necess嫫io para a prova de qu璥ica da manhseguinte n緌
foi suficiente para me manter dentro do quarto, que parei em
frente ao jardim decadente dos Tup綼 e fiquei vendo Tiaraju
pintar.
Naquele momento, a triste figura do pintor, com seus
cabelos desgrenhados e um esgar no rosto que lembrava o
eterno sorriso do Charada, inimigo piadista do Batman,
produziu um estranho efeito sobre mim. Eu tinha ent緌 dezoito
anos e contabilizava envolvimentos r嫚idos com um vizinho,
cobradores e outros trabalhadores do setor dos transportes e,
mais recentemente, com o empacotador do minimercado da
esquina, chamado Jo緌 Luiz, que conheci nas minhas
compras di嫫ias de jujubas.
Seguindo a l鏬ica da mulher feia, fiquei com Jo緌 Luiz
sem achlo atraente ou interessante, apenas porque ele
respondeu com simpatia aos meus ois e tchaus. No in獳io,
conversamos sobre os diferentes tipos de clientes do
estabelecimento e a classifica誽o do campeonato brasileiro, e em breve

40 41

Jo緌 Luiz passou a me acompanhar ata porta, esticando
nossos assuntos por mais alguns instantes. Em seguida, era eu
quem ia encontrlo nos quinze minutos de folga que a
profiss緌 de empacotador propiciava a cada turno, e que Jo緌 Luiz
gastava em um terreno baldio da vizinhan蓷, fumando os
cigarros que comprava a granel.

O primeiro beijo foi quando me distraobservando os
dois dentes escuros e curvos, quase em forma de cimitarras,
que ele apresentava na arcada frontal superior. Enquanto eu
pensava que aqueles dentes seriam capazes de partir o dedo
de algu幦, Jo緌 Luiz falou, os l墎ios muito perto dos meus.

- Perdeu alguma coisa na minha boca, Tu? Quer que eu
ajude voca encontrar?

Foi um beijo bom, principalmente porque ele n緌 fazia a
coisa lambuzando meu rosto inteiro de saliva, como era a
pr嫢ica entre os caras que conheci. A partir dali, as folgas de
quinze minutos de Jo緌 Luiz foram divididas entre o fumo e os
beijos, que ele interrompia imediatamente se outro empregado
do minimercado chegasse ao local, com a justificativa de nos
preservar da curiosidade alheia.

- Ningu幦 precisa saber de nada. Se algu幦 perguntar
alguma coisa, negue, Ju. Eu prefiro que o nosso
relacionamento fique apenas entre voce eu.

Levamos nosso relacionamento, por assim dizer,
durante alguns dias e incont嫛eis beijos, ata m緌 de Jo緌 Luiz
iniciar a explora誽o da minha superf獳ie.

- Nossa m綣. Aqui tem trabalho para uma semana, sna
parte de reconhecimento do terreno. Sua barriga vai levar uns
dois dias para ser toda acariciada. E a coxa, ent緌? Para fazer
a volta nela, eu precisaria de vinte e quatro horas, no m璯imo.

Eu achava gra蓷 do espanto dele com o meu tamanho, e
Jo緌 Luiz se divertia descobrindo peda蔞s humanos um tanto
fora das propor踥es-padr緌.

- Isso um seio ou a cabe蓷 de um careca? Menina, de
onde voctirou tanta carne?

Um dia Jo緌 Luiz me levou para tr嫳 do muro do terreno
baldio e a explora誽o deixou de ser superficial. Ficamos nesse
novo formato por algumas semanas atque, em uma quinta-
feira, ele recusou o meu abra蔞.

- Est緌 falando da gente no mercado, Tu. N緌 bom para
mim, eu posso atser demitido. Acho melhor a gente
terminar. N緌 venha mais me encontrar aqui, certo? A gente se v quando vocfor comprar as suas jujubas.

Como havia acontecido em casos pregressos e como eu
confirmaria em experi瘽cias posteriores, todo homem que
decide romper com a mulher feia sempre o faz em forma de
mon鏊ogo: ele fala sem parar, despejando suas raz髊s para o
fim, como se mulher feia restasse apenas aceitar, sem
contra-argumenta誽o alguma. Com Jo緌 Luiz, eu reagi.

- Vocque pensa que eu vou continuar comprando
naquela espelunca. Prefiro caminhar mais tr瘰 quadras e dar
lucro para o Super Moreira. Atnunca mais.

Pelo menos, diferentemente da experi瘽cia com o meu
vizinho Marcos (ver em "O defloramento"), eu jamais ofereci a
ele minhas jujubas, que eram devoradas quando tudo
terminava e Jo緌 Luiz reassumia seu lugar junto ao caixa. Homens
e jujubas nunca mais se misturaram na minha vida, e talvez
eu possa mesmo dizer que meu prazer sempre foi muito mais
completo com as balas.

42 43

Voltando ao filho mais velho dos Tup綼,
Tiaraju tentou ignorar minha presen蓷 enquanto
pintava mais algumas de suas telas. Apesar do seu, digamos,
atelideixlo exposto a olhares e coment嫫ios dos passantes,
certamente ele preferiria a solid緌 para criar.

- O que significa esse desenho?

Minha pergunta ficou vagando pelo ar, entre o barulho
distante das cigarras e o som do radinho de pilha de alguma
empregada dom廥tica. Longe de me desanimar, a indiferen蓷
de Tiaraju despertou em mim uma caracter疄tica comum a
todas as mulheres feias: a persist瘽cia.
Eu n緌 voltaria para casa antes de falar com ele.

- Onde vocguarda tantas telas?

- Vocnunca vende seus quadros?

(Um avi緌 passa roncando no c徼.)

- De onde vem sua inspira誽o?

- Quando voccompra as telas, se estsempre a pintando?

- Vocdesenha desde pequeno?

(A m綣 de Tiaraju aparece, diz algo no ouvido do filho e
entra em casa.)

- Seus irm緌s tamb幦 s緌 artistas?

- Vocn緌 cansa nunca?

- Tem telentrega de telas?

- Eu moro aqui perto e sempre vejo voc

- Que linda! Essa a mais bonita de todas que voc pintou hoje!

(Um garotinho cai da bicicleta e come蓷 a chorar.)

- Bom, acho que vou fazer um lanche. Amanheu volto
para ver vocpintar.

- N緌 fa蓷 isso.

Ap鏀 quatro horas, finalmente Tiaraju rompia seu
sil瘽cio para se dirigir a mim, ainda que com a inten誽o de n緌
mais fazlo.

- Demorou, hem? Pensei que vocn緌 fosse me
responder jamais.

Ele largou o pincel no cavalete e abandonou a paleta na
grama maltratada do jardim antes de vir ao meu encontro,
protegido pela cerca de arame esburacada aqui e ali que o
separava da cal蓷da.

- Escute, garota...

- Pode me chamar de Ju.

- Eu n緌 quero chamar vocde Ju. Eu n緌 quero chamar
vocde nada. Eu squero ficar em paz dentro da minha casa.
N緌 volte aqui nunca mais.

Eu havia lido hist鏎ias assim milhares de vezes nos
livrecos de papel jornal que minha m綣 comprava nas bancas
de revistas: Julia, Sabrina, Barbara Cartland. Em dezoito anos de
vida, eram toneladas de noveletas devoradas, e n緌 existia
uma sequer em que a hero璯a e seu pr璯cipe n緌 se
antipatizassem primeira vista, sintoma inequ癉oco de que uma
grande paix緌 estava por vir. Se Tiaraju em nada lembrava
um pr璯cipe, eu bem podia me candidatar ao posto de hero璯a.
Quatro horas no sol para arrancar poucas e r疄pidas palavras
de um cara de cabelos ensebados deviam valer alguma coisa
na escala de supera誽o de uma mulher.

44 45

- Olhe, Tiaraju, minha inten誽o nunca foi atrapalhar a
sua arte. Pinte vontade, eu apenas pretendo observar o seu
trabalho nos pr闛imos meses. E se vocme pedir, prometo
ficar de boca fechada. Mas tem que pedir com educa誽o.

O primog瘽ito dos Tup綼 me deu as costas e entrou em
casa. Continuei por mais algum tempo encostada na cerca de
arame, o bastante para ver sua m綣 recolher as muitas telas
pintadas por ele em um dia de pinceladas - e inspira踥es -
ininterruptas.

Na tarde seguinte, lestava eu. E na pr闛ima, e na
pr闛ima, e na pr闛ima. T緌 logo terminava de almo蓷r, eu me
fechava no quarto e mudava toda a minha roupa, incluindo a
lingerie. Depois de escovar meus cabelos atdeixlos com o
aspecto de um matagal p鏀-queimado e alisado, passava
perfume, colocava meu batom preferido e sa燰 para dar plant緌
na frente da casa de Tiaraju. 龍 vezes levava um livro de f疄ica
ou hist鏎ia, para minha m綣 pensar que eu estava estudando
para as provas do col嶲io. Na verdade, os livros serviriam
para que eu sentasse sobre eles, quando minhas pernas n緌
agntassem mais sustentar um corpo de volumes generosos.
Enquanto durou a Miss緌 Tiaraju, jamais estudei uma li誽o
e levei bomba em todas as mat廨ias.

Quando Tiaraju jestava t緌 acostumado comigo que,
embora fizesse quest緌 de se mostrar sempre incomodado,
virava as telas propositalmente na minha dire誽o, para exibir
as obras conclu獮as, fiquei tr瘰 dias inteiros sem aparecer.
Uma estrat嶲ia premeditada. Estava na hora de a minha
presen蓷 ser valorizada, e isso saconteceria com a minha falta.
Um fato da vida que qualquer mulher, independentemente de
ser bonita ou feia, jnasce sabendo.
No quarto dia, me postei junto cerca, como se nunca
tivesse sa獮o de l Encostado parede de madeira da casa,
sem cavalete, tela ou paleta por perto, Tiaraju me viu chegar e
caminhou para o port緌.

- O que aconteceu?

- Cansei de passar tardes inteiras sem falar e levei
minha l璯gua para se divertir um pouco. Sisso.

- Decidi pintar o seu nu inspirado em Botero. Entre e
tire a roupa.

- N緌 posso ficar nua no seu jardim, Tiaraju. Meus
irm緌s me matariam.

- N緌 vou pintar vocno jardim. Tire a roupa e fique
dentro de casa.

- Mas e a sua fam璱ia? Vocnem me apresentou para
ningu幦 e eu apare蔞 nua na sala?

- Meus irm緌s est緌 no quarto, minha m綣 costura na
varanda e n鏀 vamos ficar vontade na 嫫ea de servi蔞.

Nunca tive vergonha do meu corpo, embora meus dois
irm緌s achassem que eu devia ter. Andava apenas de calcinha
ou mesmo despida dentro de casa, atmeus peitos crescerem
tanto que se tornou imposs癉el lavar a lou蓷 do almo蔞 sem
que eles mergulhassem na pia cheia de detergente. Foi
quando meu pai pediu que minha m綣 esclarecesse para mim as
diferen蓷s entre meninos e meninas, e ent緌 meu busto foi
encarcerado para toda a eternidade em grandes suti綼 de bojo
acolchoado que ela mesma comprava, muitas vezes em lojas
de gestantes, para que eu me sentisse mais confort嫛el.
Agora, quando Tiaraju me pedia para tirar a roupa e ser sua
modelo, isso me soava natural. Imagine o que minhas colegas
magras diriam se soubessem que eu, justo eu, serviria de
modelo para um artista.

46 47

A vingan蓷 era um prato que se comia morno,
considerando que ainda ontem eu havia sido chamada de Caminh緌
de Banha pelas loiras da aula.



Entrei no lar dos Tup綼 provocando um terremoto, menos
pela for蓷 com que eu pisava que pelo mau estado da moradia
de madeira. Ao menos, foi o que eu quis pensar. Por dentro, a
casa era ainda mais malcuidada, com poucos e estragados
m镽eis, portas e paredes carcomidas, alguns guardanapos
encardidos sobre a mesa, o balc緌 e os encostos ensebados das
poltronas, a televis緌 de catorze polegadas apoiada em um
caixote e, o mais impressionante, pilhas e pilhas das pinturas
de Tiaraju espalhadas por todos os lugares. N緌 admira que
n緌 se ouvisse um ru獮o vindo dali. A quantidade absurda de
telas devia funcionar como isolamento actico, impedindo o
deslocamento do som em qualquer dire誽o ou sentido. E
obrigando os olhos vis緌 permanente de diferentes tintas
jogadas sem crit廨io algum sobre os quadros assinados pelas
iniciais T. T.

Andando com toda a leveza de que fui capaz, cobri em
poucos passos o caminho ata 嫫ea de servi蔞, onde uma tela
em branco esperava para receber minha figura.

- Pode se despir aqui mesmo enquanto eu busco as tintas.

Gra蓷s a Deus eu sempre ia ver Tiaraju usando uma lingerie
limpa.

Tirei pe蓷 por pe蓷 e usei as pr鏕rias roupas para
proteger a vis緌 das minhas intimidades. Eu n緌 tinha problema
algum com a nudez, exceto pela possibilidade de o pai de Tiaraju
me surpreender pelada na frente da churrasqueira da fam璱ia.

- Me ajude com o sof

Tapando o corpo com as roupas ainda quentes, segui
ata sala, onde Tiaraju lutava para empurrar um sofde dois
lugares.

- Em que posi誽o vocplaneja me pintar?

- Quero vocrecostada, como as v瘽us renascentistas.

- Ent緌 vamos levar o sofde cinco lugares.

Carreguei o sofmaior praticamente sozinha ata 嫫ea
de servi蔞. Se em algum momento Tiaraju me olhou de forma
menos profissional, n緌 percebi. Para ele, eu era apenas a
modelo viva, e nua, da v瘽us que em breve preencheria mais
uma de suas telas.

Ensaiamos diversas posi踥es atchegar ideal. Deitada
de lado no sof eu devia manter uma das pernas suspensa no
ar, o corpo virado para a frente, a cabe蓷 baixa e o nariz
enfiado em uma rosa. Tomara que Tiaraju n緌 levasse anos para
concluir sua obra. Muito antes disso, eu jteria morrido de
c緅mbra.

- Que formas. Buteru invejaria.

Fomos interrompidos algumas vezes pelos Tup綼
menores. Os irm緌s paravam na porta aos cutuc髊s e risadas, at serem expulsos pelo artista. Tamb幦 o patriarca da fam璱ia
apareceu para admirar o trabalho. Na metade da tarde, o pai
de Tiaraju chegou com uma cadeira de praia e sentou diante de
mim com um chimarr緌 nas m緌s, como para assistir a um
programa de televis緌.

- A mo蓷 estservida?

- Agora n緌, pai. Ela n緌 pode ingerir nada para n緌
ficar com barriga.

- Vocquer dizer com mais barriga, filho?

48 49

O velho continuou dando palpites sobre a pintura e o
meu corpo, atTiaraju largar o pincel, a noite japarecendo
sobre nossas cabe蓷s.

- Amanhterminamos. Pode se vestir.

Deixei a casa ao mesmo tempo que Peri, um dos irm緌s,
voltava da rua, e Sep outro dos rapazes, sa燰 para suas
suspeitas ocupa踥es noturnas. Mais alguns dias naquela casa e
eu contaria, com exclusividade para toda a vizinhan蓷, tudo
sobre a hist鏎ia e os mist廨ios dos Tup綼.



Na tarde seguinte, n緌 esperei a ordem de Tiaraju para me
despir. O sofhavia retornado ao seu canto na sala, de forma
que o carregamos novamente, eu nua e fazendo mais for蓷 que
o pintor. Um estranho sil瘽cio ocupava o ambiente.

- Meus pais, os garotos, todos sa甏am. SSepdorme no
quarto.

A tarde passou r嫚ida, meus mculos aos poucos se
acostumando a ficar im镽eis por horas seguidas enquanto
Tiaraju nos imortalizava. Uma eternidade depois, o barulho
na porta denunciou a sa獮a de Sep Foi o sinal para Tiaraju
largar o trabalho e sentar ao meu lado, acariciando meus
cabelos secos e duros.

- Os artistas precisam ser fortes, sabia?

- Por qu Tiaraju?

- Para n緌 confundir inspira誽o e cria誽o. Para n緌 agir
com as fraquezas do homem diante do belo... N緌 exatamente
do belo... Para n緌 sucumbir ao... peculiar.

Ele me chamou de peculiar, e n緌 deixava de ser um
elogio para quem estava acostumada a atender por 犋timo Mamute,
Tribufu Master e Supercanh緌. Logo a boca escura de Tiaraju
passeava vontade pelo meu corpo, fazendo-o perder o f犨ego
por algumas vezes. Nesses momentos, ele parava, tomava ar e
desculpava seu orgulho de macho.

- Vocentende... Eu precisaria ser um maratonista para
vencer essas dist滱cias..

N緌 posso dizer que Tiaraju tenha abusado de mim. Eu
comecei tudo quando resolvi observlo sem motivo algum, e
se agora me via nua no sofda fam璱ia Tup n緌 havia sido
for蓷da a isso. Meu arrependimento foi apenas por n緌 ter
sentido absolutamente nada, enquanto ele resfo legava e
balan蓷va seus cabelos engordurados de um lado para o outro.

Ao final do dito ato, Tiaraju, que desempenhou suas
fun踥es vestido, levantou ofegante e continuou a pintura.
Retomei minha posi誽o de modelo e nenhum de n鏀 falou, ato
grito que me despertou da letargia, ou talvez de um cochilo.

- Parla!

Corri para ver a obra conclu獮a.

- E ent緌? Botero n緌 chegaria aos meus p廥!

A tela mostrava uma mulher muito gorda e muito
branca, com as pernas abertas o bastante para que os apreciadores
da arte virassem, tamb幦, expert em anatomia. Se n緌
reconheci meu corpo naquele exagero de carnes e peles, muito
menos identifiquei meu rosto.

- que achei melhor pintar a face de mam綣 Pela
harmonia do trabalho, entende?

Pelos planos dele, aquele seria apenas o in獳io de uma
grande s廨ie de nus meus. Disse que n緌 estava interessada
em tamanha gl鏎ia e pedi a Tiaraju que destru疄se a tela
imediatamente.

50 51

- Se meus irm緌s sonharem com isso, eu sou uma
mulher morta.
- A verdadeira arte sempre teve seus martires.
- Vocprefere que eu seja assassinada a dar um fim a
esse lixo?
- A verdadeira arte sempre foi incompreendida.
- Pois saiba que meus irm緌s podem acabar com voc tamb幦.
- Seus dois irm緌s? Aqui em casa somos oito. A tela se
manterintacta esperando para ser exposta.
Sada casa dos Tup綼 sem descobrir nenhum dos seus
segredos, al幦 da falta de talento de Tiaraju. Para as
belas-artes e para o sexo.
Mais tarde, perguntei a meu pai sobre Botero. Um grande
pintor colombiano que retratava obesas, ele respondeu.
Pesquisando na biblioteca do col嶲io, descobri que o tal Botero
deveria ganhar uma est嫢ua do Greenpeace, tal a quantidade
de baleias que imortalizou.
N緌 passei mais pelo jardim decadente dos Tup綼, mas
soube, pelas conversas com as vizinhas, que seu filho mais
velho continuava L pintando compulsivamente. Daria
continuidade s廨ie de nus iniciada comigo?
Vivi algum tempo assombrada pela possibilidade de
uma futura exposi誽o de Tiaraju. Durante v嫫ias noites, tive
pesadelos em que o autor e sua cria誽o apareciam nas
primeiras p墔inas dos jornais, os rep鏎teres querendo mais detalhes
sobre a gorda retratada ali.
Minha ignor滱cia sobre o assunto me levava a pensar
que sua obra jamais seria aceita em uma galeria, mas isso n緌
foi o bastante para me tranqlizar.
A verdadeira arte sempre uma inc鏬nita.





4.4. Augusto


Tudo na minha prima Bela Costa Pinto era falso, do
vermelho do cabelo bolsa louis Vitton de camel Sem falar na
idade, que ela sempre diminu燰. Ainda assim, meu tamb幦
primo Augusto Fagundes Pinto acreditou quando, na
primeira vez em que dormiu na cama dele. Bela disse que
nenhum outro cara no mundo havia conseguido deixla
daquele jeito.
- De que jeito?
- Como se um caminh緌 de lixo tivesse me atropelado,
sque sem doer.
N緌 era uma imagem muito rom滱tica, mas Augusto
ficou lisonjeado, de qualquer forma. 宁amos todos primos, Bela
era famosa na fam璱ia pela quantidade de namorados ao longo da
vida, sempre citada quando as cunhadas e as tias-av鏀
precisavam de algum par滵etro para falar de outra mulher.
- Essa jdeu muito por a Mas n緌 tanto quanto a Bela.
Desde crian蓷 fui fascinada pela beleza e pelo sucesso da
minha prima. Supondo que naquele tempo eu n緌 fosse feia,
como acredito que n緌 era, embora o restante da humanidade
n緌 compartilhasse da minha opini緌, ainda assim Bela era
muito mais luminosa e viva e encantadora, a primeira no afeto
dos av鏀 e na aten誽o dos tios. Imposs癉el para uma garota sem
grandes qualidades, e nenhuma aparente, concorrer com ela.
Bela jexistia quando Augusto e eu nascemos, o que n緌
combinava com sua vers緌 a respeito da pr鏕ria hist鏎ia.
- Lembra quando vocme ensinou a amarrar os t瘽is,
Augusto? Vocdevia estar na segunda s廨ie e eu, nossa, eu
nem sabia andar direito. E quando aprendi com voca pintar
as unhas, Ju? Muito do que sou hoje devo a voc sabia?

52 53

Nas minhas recorda踥es, Bela aparecia de sapatos
brancos e cabelo castanho, muito diferente do ruivo atual,
apontada por todos como a mocinha da fam璱ia. Eu devia ter ent緌
cinco ou seis anos. Antes disso, minha mente era uma
nebulosa engolindo os beijos da m綣, todos os anivers嫫ios e as
poss癉eis bonecas de pano da primeira inf滱cia. Passei por
aquela fase sem registrar nada, ao contr嫫io do meu irm緌
mais velho, Everton, que afirmava lembrar de cada rela誽o
sexual do pai com a m綣 gr嫛ida.

- Eu sentia o tro蔞 do velho na minha orelha esquerda,
cara. Foi um milagre ele n緌 ter me rompido o t璥pano.

Bela foi a prima gostosa sempre presente nos sonhos de
meus irm緌s Everton e Emerson, na cabe蓷 dos primos Dinho,
David, Jior e Samuei, nos maus pensamentos dos tios Ivan
e Paulo e nos desejos de ineros parentes masculinos
distantes, que come蓷ram a freqntar as festas 璯timas dos
Costas Pintos assim que a garota botou peito. Quanto a mim,
lembro apenas de Robertinho, filho do segundo casamento de
minha tia Marlene, contando ter sonhado comigo.

- No come蔞 pensei que fosse a Mulher-Gorila em uma
jaula, mas ent緌 reconheci voc

Cresci apaixonada por Augusto, que cresceu me
ignorando. Como eu, tamb幦 ele se criou ouvindo que Bela j tinha estado com boa parte dos homens da fam璱ia. Atque
um dia virou alvo das aten踥es da prima.
- Pode espalhar o protetor nas minhas costas?
Enquanto todos comemoravam, de roupa, os noventa e
nove anos da bisavMargareth, Bela exibia um biqu璯i quase
impercept癉el para tomar o sol fraco de agosto no jardim da
matriarca. A bisav com seus olhos turvos pela catarata,
provavelmente enxergava a bisneta nua sobre o colch緌 de ar em
forma de l璯gua, presente em conjunto dos netos mais mo蔞s
que revoltou a aniversariante.
- Um colch緌 de l璯gua. Isso uma fam璱ia ou uma
conven誽o de porn鏬rafos?
O fato que Augusto aplicou o protetor nas costas de
Bela e depois levou a tarde reaplicando o creme, cada vez que
a prima suava ou mudava de posi誽o no colch緌. Quando a
comemora誽o do quase centen嫫io da bisavchegou ao fim,
mais de dez da noite, Bela pediu para tomar banho no
apartamento dele, onde os dois passaram os tr瘰 dias seguintes
levantando da cama apenas para ir ao banheiro ou receber o
entregador de pizza.
Ela com a sensa誽o de ter sido atropelada por um
caminh緌 de lixo.



A primeira rea誽o foi a de S璱via, minha tia e m綣 de Augusto.

- Eu n緌 acredito que voctamb幦 vai cair na conversa
dessa sujeitinha. Jn緌 bastava o seu pai?

Tia S璱via ent緌 falou de um suposto envolvimento do
marido com Bela, num ver緌 em que o trabalho exigiu a
presen蓷 dele na cidade. O romance teria durado alguns meses e
foi dedurado por um conselho de parentes especialmente
constitu獮o para essa miss緌.

- Queriam denunciar seu pai ao Juizado de Menores. Eu
n緌 deixei, mas tamb幦 n緌 perdoei.

Depois tia S璱via falou de outros Pintos seduzidos por
Bela, e cogitou, chorando, a hip鏒ese da influ瘽cia de tal
sobrenome no destino da fam璱ia: dois irm緌s ao mesmo
tempo, todos os peres e adolescentes, o companheiro da

54 55

tr瘰 vezes via tia Eva, o primo que a maioria julgava veado,
o tio e padrinho Adalberto, irm緌 g瘱eo do pai de Bela.

- E qual o problema, m綣? A Bela estava apenas se
preparando para mim.

Coube a mim o papel tradicionalmente reservado 跴
mulheres feias: o de confidente. Procurei Augusto com a
inten誽o de abrir-lhe os olhos sobre a conduta da prima Bela.
Mas, nem bem comecei, ele desabafou nos meus ouvidos toda
a sua m墔oa com a incompreens緌 e o julgamento leviano dos
pais a respeito da namorada.

- preconceito, Ju. Essa hist鏎ia mostra como a
sociedade va f瘱ea. Basta que ela n緌 seja submissa e lute pelos
seus desejos, e pronto. Na mesma hora tachada de puta. S que o que eu sinto por Bela muito maior que
qualquer conven誽o. Quanto mais atacarem a mulher que eu escolhi, mais
eu vou estar aqui para amla.

Para sermos fi嶯s verdade, Augusto que tinha sido
escolhido por Bela, como tantos foram antes dele e tantos
seriam depois. Mas meu primo estava gostando de interpretar
aquela esp嶰ie de Romeu dos anos oitenta e, por ingenuidade
ou romantismo, na pr嫢ica a mesma coisa, via seus
sentimentos aumentarem a cada novo golpe contra a honra de Bela.

Honra, neste caso, uma evidente for蓷 de express緌.

- Conto com vocpara defender a Bela, Ju. So cora誽o
de algu幦 sem vaidade alguma, como voc pode ser meu
aliado nesta batalha. Vocfica do meu lado?

caracter疄tica da mulher feia se irmanar dor de
terceiros, de forma que sada conversa com Augusto
transformada em uma guardida virtude de Bela. E se, por felicidade
ou milagre, um dia meu primo resolvesse enxergar a verdade,
eu, a pessoa que mais o compreendia no mundo, estaria
esperando por ele.



O affair de Augusto e Bela logo ficou maior que a casa dos
Fagundes Pintos e se espalhou pela fam璱ia. Jno lado dos Costas
Pintos, houve apenas o sil瘽cio. O pai de Bela, com hist鏎ico de
duas cirurgias para coloca誽o de pontes de safena, preferiu se
manter alheio ao assunto. A m綣 da garota, ocupada com suas
jogatinas pelos bingos da cidade, sse preocupou com a
ascend瘽cia do novo genro.

- Agente sempre quer algu幦 de fam璱ia boa para a filha.

O casamento aconteceu menos de um ano ap鏀 a festa
dos noventa e nove anos da bisavMargareth, que faltou cerim獼ia por estar ligada a tubos na cama de uma cl璯ica
geri嫢rica. A fam璱ia, que havia jurado n緌 comparecer, lotou
a igreja, onde Bela entrou de vestido rosa, sob a aprova誽o das
mais velhas das mulheres presentes.

- Pelo menos isso. Sfaltava a sem-vergonha casar de
branco.

Confirmando os progn鏀ticos de uma uni緌 breve,
Augusto e Bela ficaram poucos meses casados. Para desgosto
da m綣 dele, athoje do獮a com o engano do filho, o ex-casal
continua se encontrando ocasionalmente, entre uma e outra
aventura de Bela com um tio-avou o novo concunhado de
algum Pinto. Como fez desde o in獳io, Augusto ignora a
choradeira da m綣. E jamais aceitou meus convites para discutir a
rela誽o deles em um bar na sexta noite, ou em uma boate no
s墎ado, ou em um cinema no domingo.

- Voccomo uma irmpara mim, Ju. Melhor ainda: um
irm緌. Um camarada a quem eu posso confiar tudo. Sque eu

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n緌 tenho vontade de dan蓷r com um camarada meu. Voc entende, n緌
Tudo em Bela podia ser falso, do cabelo agora
loiro-acinzentado aos 鏂ulos Armani comprados em uma loja de
coreanos do centro da cidade, mas a sensa誽o dela de ser
atropelada por um caminh緌 de lixo sempre que os dois ficam
juntos, nessa Augusto, pelo jeito, continua encontrando todos
os motivos para acreditar.


4.5. Otelo

Eu jdividia um apartamento de um quarto com minha
amiga Catilene quando reencontrei Otelo, colega que me
acompanhou durante boa parte do col嶲io, no tempo em que a
minha m嶮ia era repetir pelo menos uma vez cada s廨ie. E a
dele tamb幦.
Essa coincid瘽cia, ou burrice, como queria a diretora da
escola, uma mulher feia e murcha chamada professora
Escol嫳tica, nome que deve ter sido fundamental para definir seu
destino, acabou me aproximando de Otelo. Enquanto turmas
inteiras trocavam as Capitanias Heredit嫫ias pela Revolu誽o
Francesa, Otelo e eu continu嫛amos estudando Mem de Se
Tomde Souza, entre muitos outros pequenos personagens
da nossa hist鏎ia que jamais consegui aprender.
Eu podia definir Otelo em uma palavra: feio. Magro, alto,
parecia n緌 ter mculo algum embaixo da pele. Foi o magro
mais fl塶ido que conheci, o pouco de carne que cobria seus
ossos balan蓷ndo frouxa quando ele corria nas aulas de
educa誽o f疄ica. O rosto de Otelo tamb幦 n緌 apresentava
qualquer atrativo, sendo apenas o conjunto, utilit嫫io, de dois
olhos, uma boca e um nariz. 舥g緌s feitos para cumprir suas
fun踥es sem serem percebidos na vida.
Quando finalmente terminei o col嶲io, Otelo trabalhava
como office.boy no escrit鏎io de advocacia de um amigo da
sua fam璱ia. E alguns anos depois, quando nos avistamos no
centro da cidade, eu levando o certificado de aprova誽o do
meu curso de computa誽o, ele carregando uma pasta de couro
imponente, marrom com cantos de metal dourado, n緌 tive
didas de que Otelo jera, no m璯imo, s鏂io do tal escrit鏎io.

- N緌, n緌. Continuei boy. Gostei e decidi ficar na carreira.

Eu havia sido admitida no consult鏎io de uma dentista
especializada em atender crian蓷s, e minha fun誽o era levar
mordidas dos pequenos pacientes enquanto tentava
segurar suas bocas para a doutora Suzane - este era o nome dela -,
aplicar flr, consertar c嫫ies, extrair dentes-de-leite e outras
pr嫢icas da odontopediatria. Foi a pr鏕ria doutora Suzane,
sempre bonita com seus cabelos negros e dentes mais brancos
que o jaleco que usava, que me aconselhou a fazer o curso de
computa誽o.
- Vocprecisa pensar no seu futuro, Ju. Continue sendo
minha secret嫫ia, mas estude alguma coisa. E agora, por
favor, lave seu polegar, que ele estsangrando.
N緌 fosse pelos pacientes que quase arrancavam meus
dedos com seus caninos esburacados, teria continuado para
sempre com a doutora Suzane. Al幦 de gostar da dentista,
ainda devia a ela, tanto moral quanto financeiramente, o
conserto de ineras c嫫ies provocadas pelo consumo de quilos e
quilos e quilos de jujubas a蓰caradas, e seus resqu獳ios mal-
escovados. Onze c嫫ies, para ser mais exata, sem contar os
tratamentos de canal que um amigo da doutora Suzane fazia
na minha boca mediante pagamento parcelado, dez vezes

58 59

para cada dente. Pelos meus c嫮culos, eu jestaria usando
dentadura quando terminasse de paglo. Minhas liga踥es
com a odontologia me levaram a considerar a hip鏒ese de
prestar vestibular para a 嫫ea, mas meus neur獼ios
naturalmente desanimados desistiram diante das dificuldades do
caminho. Ent緌, entre datilografia, manicure e computa誽o,
os tr瘰 cursos que selecionei em um folheto do Senac, acabei
me decidindo pelo timo. Com o apoio do meu pai.
- a profiss緌 do futuro. O pa疄 precisa de craques na
inform嫢ica.
N緌 me tornei, absolutamente, o Peldo computador. Mas
assim que peguei meu diploma, passei a procurar empregos na
minha 嫫ea e oh, como era bom pensar que eu tinha, afinal, uma.
Era isso que fazia no dia em que reencontrei Otelo.
- Vamos tomar um caf Eu pago com meu vale-refei誽o.
Otelo continuava t緌 feio quanto antes. Tinha
engordado alguns quilos, que n緌 fizeram muita diferen蓷 no seu
aspecto geral, e continuava o mesmo camarada compreensivo
e gentil de quando tent嫛amos, em v緌, nos consolar por mais
um ano escolar perdido.
- N緌 chore, Ju. N鏀 ainda temos a vida toda para passar
nessa oitava s廨ie de merda.
Terminado o cafe o tempo de que ele dispunha antes
que os bancos fechassem, combinamos um jantar no meu
apartamento na pr闛ima vez em que Catilene viajasse para
visitar os pais, no interior de Santa Catarina.
- Me convide mesmo. Eu levo um champanhe que
ganhei de Amigo Secreto.


N緌 pensei mais em Otelo atCatilene aparecer de sa獮a para
a rodovi嫫ia, rumo ao anivers嫫io da m綣.

- N緌 esque蓷 de fechar as janelas, trancar a porta e,
principalmente, n緌 bote homem para dentro de casa. At segunda.
O problema de morar com Catilene que ela era a dona
do apartamento e se comportava como tal. A televis緌 ficava
sempre no canal que ela gostava de assistir, o chuveiro
el彋rico n緌 podia sair jamais da regulagem estabelecida por ela,
eu ficava terminantemente proibida de tocar nos produtos
com que ela abastecia a geladeira, n緌 se admitiam pingos de
墔ua no espelho da pia e no ch緌 do banheiro e o seu D瘽is,
zelador do pr嶮io, era o ico homem com entrada permitida
em nosso santu嫫io, ainda assim para trocar o g嫳 ou fazer
algum conserto. Eu, que achava quase insuport嫛el conviver
com as ordens do meu pai, as manias da minha m綣 e as
implic滱cias de meus dois irm緌s, vivia agora subjugada pelas
vontades e as neuroses de Catilene.
Mudar dali era uma das minhas prioridades, e para isso
eu procurava um bom emprego na 嫫ea de inform嫢ica.
Consciente de estar desrespeitando a regra m嫞ima, liguei
para Otelo marcando nosso jantar para aquela mesma noite.

- Venha 跴 oito e diga para o zelador que vocmeu
irm緌. Minha amiga n緌 quer que eu receba caras estranhos
aqui.

Antes das sete horas, quando eu ainda n緌 havia tomado
banho ou arrumado a sala, seu D瘽is avisou, pelo porteiro
eletr獼ico, que meu irm緌 estava subindo.

- Vocveio cedo demais.

- que vim fazer uma entrega aqui perto e aproveitei
para subir. Uma passagem de 獼ibus a menos...

Quando vim arrumada do quarto, ele jhavia separado
na geladeira os ingredientes para o nosso jantar.

60 61

- Tire as m緌s da essas coisas s緌 propriedade da
Catilene. Vamos ao mercadinho comprar o que precisamos. Se
voctrouxe o champanhe, coloque para gelar.

- Esqueci, mas pode deixar que pego umas cervejas no
mercado.

Voltamos para casa com um quilo de massa, atum,
quatro latas de cerveja e um ppara fazer pudim de caramelo que
ficava pronto em quinze minutos. As habilidades de Otelo na
cozinha eram t緌 prec嫫ias quanto as minhas, mas o jantar
ficou relativamente saboroso e n緌 deixamos sequer um
penne no prato. A prop鏀ito desse tipo de massa, Otelo fez
uma observa誽o.

- Um conselho para voc Ju. Indo a um restaurante
italiano com um acompanhante, e ao pedir ambos pratos com
penne, jamais diga: gar蔞m, traga-nos dois pennes. Entendeu?

- Vamos lavar a lou蓷. Catilene detesta cozinha bagun蓷da.

- Tem certeza que n緌 era melhor viver com a sua fam璱ia?

Talvez fosse, mas eu sonhava em morar longe das ordens
e da rotina que me acompanhavam desde que nasci, e n緌 era
todo dia que a oportunidade se apresentava. O fato de
encontrar novas ordens e uma nova rotina definitivamente n緌
pesou, quando aceitei dividir o apartamento com Catilene:

- Vocpaga metade da luz, 墔ua e condom璯io, e dorme
na sala. Liga踥es telef獼icas, scom a minha autoriza誽o.
Cada uma compra sua pr鏕ria comida. Vocguarda suas
coisas na porta da geladeira. Entendido?

Se eu esperava que minha fam璱ia promovesse um novo
Dia do Fico quando dei a not獳ia da minha partida, fiquei
decepcionada.

- S廨io? A partir de hoje, seu quarto meu.

Everton interessado no meu esp鏊io, Emerson que
pareceu n緌 ter ouvido, minha m綣 dizendo que seria bom para o
meu crescimento e meu pai recitando uma das frases de efeito
moral que fazia na hora, para todo tipo de ocasi緌.

- O importante levar junto com voca educa誽o que
lhe demos.

E assim eu fui morar com Catilene.

Depois de saldar meus d嶵itos com a moradia, pouco
sobrava do sal嫫io que a doutora Suzane me pagava. Cansei
de dormir com a sensa誽o de que meu est獽ago se
autodevorava, tais os barulhos que fazia. Sempre que poss癉el visitava
meus pais, mais por amor ao almo蔞 que a eles. Muitas foram
as noites em que sonhei me saciar na geladeira abarrotada de
alimentos com o nome de Catilene, mas preferi a fome a
enfrentar a fia dela.

Agora, o jantar em processo de digest緌 estufava meu
aparelho digestivo, esquentando o corpo inteiro. Fui obrigada
a deixar Otelo tirar os pratos e lavar a lou蓷 sozinho. Ap鏀
tanta massa, tudo que eu conseguia era ficar estirada no
tapete da sala, os p廥 jogados sobre uma mesinha de centro
com tampo de vidro.

Otelo veio da cozinha com um prato transbordando de
pudim de caramelo ainda quente. Quando terminei, me senti
como uma jib鏙a que tivesse devorado um pudim quente de
elefante. Eu jn緌 era capaz de mexer sequer os olhos.

- Vocfica linda depois de uma boa refeic緌.

Otelo sentou no ch緌 e ficou acariciando meu p As
c鏂egas que eu sentia se misturaram ao torpor que dominava
meu corpo inteiro, e eu n緌 conseguia pedir a ele que
parasse. Minha m綣 sempre disse que eu morreria de
congest緌 se continuasse comendo demais. Serque a profecia ia se

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concretizar justo na primeira noite em que eu recebia um
homem na minha nova casa?
Felizmente os dedos de Otelo subiram do ppara a
minha barriga, respeitosamente, sem se deter em recanto
algum. Eu estava bastante gordinha nessa 廧oca e Otelo
pareceu encantado com a quantidade e a textura das carnes que
encontrou.

- Aqui tem divers緌 para uma d嶰ada.

Apesar da minha quase congest緌, Otelo e eu passamos a
noite no quarto de Catilene. Na manhseguinte, quando ele foi
embora, lavei com cuidado os len踠is e coloquei de volta na
cama de solteiro todos os ursinhos de petia que
testemunharam nosso encontro. Uma sorte a cama, em que eu mal cabia
sozinha, n緌 ter quebrado com tantas evolu踥es e movimentos.
Catilene n緌 desconfiou de nada e eu continuei
encontrando Otelo todos os dias, atque ele me pediu em namoro.
O primeiro pedido de namoro de minha vida, que eu aceitei
cheia de orgulho da minha capacidade de conquistar um
homem.
Vivi com Otelo uma exist瘽cia pac璗ica e atmesmo
feliz. 狒mos ao cinema, a lanchonetes, a parques e 跴
respectivas casas de nossas fam璱ias. Apresentei Otelo a meus pais
e logo ele estava vendo televis緌 e freqntando os almo蔞s e
jantares dos Costas. Sua m綣, via, me recebeu bem, embora
com observa踥es n緌 muito gentis sobre o meu tamanho e
peso.

- Demorou, mas quando arranjou namorada, o Otelo
quis uma que valesse por duas.

Ou ent緌:

- O Otelo pode trocar a Ju por duas de quarenta. Quilos,
bem entendido.

E mais.

- Fiquem para o jantar, queridos. Onde comem seis,
come a Ju.

Otelo, filho ico de m綣 via, achava gra蓷 nas
brincadeiras da velha, e quem presenciasse as piadas - vizinhos,
tias em visita, a vendedora de produtos de beleza em
domic璱io e meus pr鏕rios parentes -, tamb幦. Freqntemente
dona Matilda, como se chamava minha sogra, convidava
minha fam璱ia para jantar na casa dela, convocando os
comensais sempre da mesma forma:

- Vamos nos servir antes da Ju ou vai faltar estrogonofe!

No dia em que reclamei das grosserias de sua m綣, Otelo
levantou e me deixou sozinha em um restaurante, com dois o
la minutana frente. Para n緌 desperdi蓷r comida, dei fim
aos dois pratos. Ele demorou setenta e duas horas para me
ligar de volta, propondo um cinema para a noite. Aceitei e foi
ent緌 que Otelo come蔞u a justificar seu nome:

- Tr瘰 dias sem namorado por perto. Aposto que voc deu bola para todos os homens do seu trabalho.

Os homens do meu trabalho choravam ao me ver e me
mordiam com voracidade. Seria interessante, se a m嶮ia de
idade deles n緌 fosse de seis anos, no consult鏎io da doutora
Suzane.

- E esse decote? Quer que os caras se joguem para dentro
da sua blusa?

Por coincid瘽cia ou premoni誽o, dona Matilda batizou
de Otelo o homem mais ciumento que eu jamais conheci. Tal o
personagem de Shakespeare, o meu Otelo se debatia em
didas e suspeitas e, quanto mais o tempo passava, mais
desconfiava de estar sendo tra獮o por mim, ainda que isso n緌 fosse
absolutamente verdade.

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- Jdisse a vocque me atrasei porque a doutora Suzane
teve uma emerg瘽cia, um menino que quebrou quatro dentes,
mas que mordia meus dedos como se tivesse oito a mais. Veja
as marcas aqui. Por pouco n緌 precisei levar pontos.

Minha m綣 era da opini緌 de que cie prova de amor,
e que eu devia ficar feliz com as rea踥es de Otelo. Catilene,
que me viu chorando v嫫ias vezes por causa das nossas
brigas, achava que eu devia romper o namoro imediatamente,
para ensinar Otelo a respeitar as mulheres. O problema que
eu n緌 queria vingar toda uma esp嶰ie. Minha ica vontade
era fazlo entender que eu era fiel, sim, como toda
apaixonada. Ou talvez apaixonada n緌 fosse o termo mais fiel para
definir meus sentimentos por Otelo.

Eu era uma mulher feia, com todas as inseguran蓷s e a
solid緌 que minha condi誽o trazia. E antes disso, eu era uma
mulher, com todas as inseguran蓷s e a solid緌 que essa
condi誽o trazia. Jtinha visto muitas garotas bonitas sofrendo na
m緌 dos seus namorados sem abandonlos, possivelmente
por medo de n緌 conseguirem companhia para o pr闛imo
s墎ado. Comparada com a delas, minha situa誽o era muito
mais grave. Otelo havia sido o ico cara a se interessar por
mim nos meus timos vinte e tr瘰 anos, o ico que se disp盭
a andar abra蓷do comigo na rua, na frente de quem quer que
fosse, e que julgava poss癉el que eu fosse tralo a qualquer
instante. Se o deixasse, eu n緌 teria realmente com quem sair
no pr闛imo s墎ado. E em todos os outros.

Ent緌, o cie de Otelo come蔞u a passar dos limites.

Em um domingo que Catilene n緌 estava em casa, ele
bateu na minha porta disposto a escolher as roupas que eu
usaria dali em diante.

- Camiseta sem manga, n緌. Prefiro que vocpreserve
seus bra蔞s. Vestido, desaconselh嫛el. A mulher fica mais
protegida de cal蓷 comprida. Decotes, o seu pr鏕rio bom
senso deveria vetar. Bermudas ficam, n緌 vamos dizer
proibidas, mas suspensas.

N緌 existia gordinha sem bermudas, e eu n緌 seria a
primeira. Me opus aos desmandos de Otelo, que, depois de
alguns gritos, saiu batendo a porta e atraindo a aten誽o do
s璯dico. Sfaltava Catilene ficar sabendo que eu recebia um
homem descontrolado no apartamento enquanto ela
estudava suas li踥es de pedagogia.

Chorei tanto que, na manhseguinte, me senti mais magra
ao colocar minha cal蓷 jeans. Cal蓷 n緌, pensei. Vou vestir uma
bermuda, pe蓷 exemplar do 璯dex de Otelo. Ele n緌 havia dito,
mas imaginei que contrarilo significaria nosso rompimento.
Ainda assim, arrisquei. Eu era uma mulher feia e n緌 uma
ratazana, daquelas que um dia dissequei nas aulas de biologia.

A caminho do trabalho, eu enxergava Otelo em cada
office-boy. Ele era mais velho que a m嶮ia, verdade, com
alguns fios brancos precocemente despontando da cabeleira
marrom, mas ainda assim eu o via em adolescentes, punks,
orientais, negros e nas raras garotas que passavam com
pastas estourando de contas a pagar e firmas a reconhecer.
Estive distra獮a e triste durante o dia inteiro, a ponto de n緌 me
importar com as dentadas dos pequenos pacientes da
doutora Suzane. Nada que se comparasse dor do meu cora誽o
mastigado.

Otelo n緌 me procurou por outros tr瘰 dias atligar, na
noite de quinta-feira.

- Vamos jantar na casa da mam綣. Vato centro e eu
encontro voc

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Vesti minha melhor cal蓷 jeans com uma camiseta da
Pen幨ope Charmosa que eu susava em ocasi髊s especiais.
Era engra蓷do ver a Pen幨ope mais gorda, esticada sobre os
meus peitos. Otelo elogiou minha apar瘽cia e mais n緌 disse,
atchegar casa da m綣.

- Que surpresa, queridos. Se eu soubesse que a Ju vinha,
teria me prevenido com um rancho.

Comi pouco e falei menos ainda, enquanto Otelo e dona
Matilda relembravam, pela cent廥ima vez na minha presen蓷,
as frases e brincadeiras do bebOtelo.

- Ele n緌 conseguia falar "mam綣" de jeito nenhum! Ele
me chamava de "nan綣"! N緌 engra蓷d疄simo, Ju?

Quando ela ia come蓷r o mil廥imo relato sobre os
primeiros passos do pequeno Otelo, aleguei uma dor de
est獽ago fulminante e pedi para ser levada para casa. Dona
Matilda reagiu com sua tradicional delicadeza:

-Vocrenegando comida? Spodia ser doen蓷.

Na porta do 獼ibus, n緌 permiti que Otelo me beijasse a
boca.

- Vocquer terminar comigo, Ju?

Ent緌 eu pensei nos pr鏀 e nos contras do nosso namoro.
Os pr鏀: a vontade dele de estar comigo, os elogios que me fazia,
as inten踥es s廨ias que demonstrava, nossas idas a cinemas, os
jantares, os passeios em geral e os planos de fazer o que
faz燰mos de vez em quando na cama de Catilene todas as noites, com
a mesma vontade, mesmo depois de trinta anos de casados. Os
contras: o cie, a m綣 piadista, a lista de roupas proibidas.
N緌 era t緌 ruim assim, considerando o que eu perderia.

- Se vocterminar comigo, eu me mato.

- S廨io?

N緌 vou dizer que terminei para ver se Otelo realmente
se suicidaria em minha homenagem, mas durante duas
semanas comprei o jornal todas as manh綼 para ver se ele havia
cumprido a promessa.

E ele n緌 cumpriu.



4.6. An獼imo Um

Era um domingo como todos, com a vizinha de cima
batendo seus saltos altos na minha cabe蓷 desde 跴 oito da
manhe nada para comer em casa. Eu havia trabalhado at tarde dia ap鏀 dia da semana, e os planos de passar no
supermercado para encher o carrinho com as porcarias mais
engordantes da indtria aliment獳ia ficaram apenas na minha
vontade. Chocolates, cada pedacinho derretendo na boca e
colando para sempre na bunda. Sucrilhos, o que de mais
pr闛imo da ra誽o para animais o homem desenvolveu para o
homem. Massas italianas de grano duro para comer com
molhos de muitos queijos e calorias incalcul嫛eis.
Refrigerantes e sucos base de toneladas de a踖car, ainda assim muito
mais saud嫛eis que os ado蓷dos com aspartame, sacarina
s鏚ica e demais bombas da indtria diet. Bolos prontos com
recheios cremosos de sabores falsos: morango, abacaxi,
laranja ou qualquer outra engana誽o aromatiza da. Tujubas,
sempre elas, daquelas que grudam nos dentes e fazem a
alegria dos dentistas. Pensar em tudo o que eu n緌 tinha na
geladeira aumentava minha irrita誽o com o barulho do andar de
cima. Agntei atas onze sob as cobertas e os saltos da
vizinha e ent緌 fui em busca do consolo que sg獼dolas e
prateleiras estourando de doces, p綣s e biscoitos poderiam me trazer.

68 69

O supermercado mais pr闛imo ficava dentro de um
shopping. Comprei muito mais do que eu poderia consumir,
pagando com um cheque jafogado nos juros do especial. Foi
um verdadeiro milagre um alarme n緌 tocar no momento em
que a caixa o apanhou da minha m緌.
O vaiv幦 para esvaziar o t嫞i e levar todas as sacolas
pela escada me fez adiar a volta para casa. Era quase uma da
tarde de domingo e a pra蓷 de alimenta誽o do shopping
chamava os famintos, o cheiro de fritura fazendo meu est獽ago
procurar inutilmente o que hmuito n緌 existia nele. Bife
duro ao molho de nata com gosto de gordura e uma montanha
de arroz e batata palha para acompanhar. Sde pensar nisso
meu cora誽o ficava t緌 euf鏎ico quanto meu aparelho
digestivo. Deixei o carrinho estacionado em um canto do
supermercado e fui almo蓷r.

Como eu previa, o bife exigiu um esfor蔞 extra da minha
mastiga誽o. Se tivesse levado adiante meus planos juvenis de
cursar veterin嫫ia, prov嫛el que eu agora soubesse todos os
nomes dos nervos que inutilmente tentava triturar. Chegava
a gastar doze minutos com um mesmo peda蔞 de bife na boca
e, na falta de ocupa誽o melhor durante tal atividade, me
dediquei a observar os outros clientes espalhados pelas mesas do
shopping.
Mulheres feias em bandos. Como elas andam em bandos,
meu Deus. E como parecem solit嫫ias assim, em seus
programas de amigas, juntas apenas - eu seria capaz de apostar -
porque nenhum homem as quis neste domingo.

Qualquer semelhan蓷 com o meu caso n緌 ser analisada aqui.

Fam璱ias. Sempre s緌 muitas no shopping, em hor嫫ios
de almo蔞. Me detenho nos pais barrigudos, nas m綣s com
seus cheiros fortes de perfume, nas crian蓷s, em nero
grande demais atpara um pa疄 com grandes extens髊s
despovoadas, como o nosso, e me fixo em um menino de terno,
parecido com o do pai ou, pela idade, av que o acompanha
em uma pizza.
Poucas coisas s緌 t緌 tristes na vida quanto um menino
de terno.

Quando o garoto vai embora, levado pelo pai ou av noto
um homem de seus cinqnta anos, com aspecto de pai
de fam璱ia, sque sem fam璱ia, almo蓷ndo em uma mesa de
canto. O que faz um sujeito que com certeza tem filhos j adultos, adolescentes e quem sabe atum tempor緌 de seus oito
ou nove anos almo蓷ndo sozinho em um domingo?

Decido fazer do homem meu novo objeto de
investiga誽o, mesmo vendo que sua bandeja estquase vazia e logo ele
irembora tamb幦. No meu prato, quase meio bife e muitos
minutos a mais de mastiga誽o paciente para terminar a
refei誽o, O homem n緌 pode ir embora, n緌 enquanto eu n緌
engolir todos os nervos que me restam. Esque蔞 a educa誽o e passo
a encarlo, um amontoado de fibras endurecidas indo e vindo
na minha boca, atele perceber que estsendo observado.

Um homem como aquele, grisalho, nem magro e nem
gordo, n緌 muito alto, usando um colete de lfininha sobre a
camisa de mangas curtas, n緌 deve ser alvo de muitos olhares
em um domingo no shopping, como fica claro em seu
constrangimento. O sujeito vira para todos os lados, tentando
descobrir o objeto da minha aten誽o. Sorrio para esclarecer
qualquer dida: ele. Meus dentes mostra parecem aumentar
seu desconforto (se eu cortar o bife em quatro peda蔞s
relativamente grandes, doze minutos de mastiga誽o para cada um

70 71

deles, consigo terminar o almo蔞 em quarenta e oito minutos,
e ent緌 o homem estarlivre para levantar e sair).
Engulo um naco quase inteiro e a carne tranca na minha
garganta. como se uma pedra entalasse na regi緌 da
campainha, mas ainda n緌 hmotivo para p滱ico. Atr嫳 do
guardanapo de papel todo amassado, me esfor蔞 para expelir a
carne tossindo baixinho.
Nada.
Minha garganta come蓷 a fazer um som pr鏕rio,
comandado por ela mesma e semelhante ao ru獮o que o gato da
minha m綣 faz ao engasgar. Tendo percebido minhas
dificuldades, agora o homem quem me observa. Continuo com o
m彋odo de tossir discretamente, mas o barulho involunt嫫io
da minha epiglote, ou coisa que a valha, jatrai a curiosidade
das pessoas em volta.
Eu deveria ir ao banheiro para tossir alto atvomitar, e
assim ficar livre da carne que vai me assassinar em poucos
segundos, diante dos olhares dos clientes do shopping, mas
prefiro esperar um pouco mais, N緌 quero passar pela mesa
do pai de fam璱ia sem fam璱ia nesse estado, depois de me
dedicar a seduzi-lo durante a tima meia hora.
Jhmotivo para p滱ico.
N緌 consigo mais respirar.
Independentemente da minha vontade, minha tosse
agora gritada, quase o lamento de um bicho, talvez uma vaca
sozinha abatida a machadadas em alguma fazenda perdida
nos pampas. As l墔rimas escorrem e n緌 vejo nada, mas sei
que hmuita gente assistindo minha morte. Algu幦 perto
de mim repete: "Fa蓷 for蓷 que sai", como se, em lugar de
sofrer um engasgamento, eu estivesse dando luz um
matambre.
Ent緌 fui salva.
Pela intensidade do choque, deve ter sido um dos
funcion嫫ios da seguran蓷. O golpe que levei nas costas fez com que
o peda蔞 de carne voasse por v嫫ios metros, e certamente
deslocou algumas v廨tebras da minha coluna.
Aos poucos as pessoas se dispersam. Crian蓷s ainda
apontam para mim e um outro cliente ronda minha mesa,
assustado. Mas logo novas batatas fritas saem do 鏊eo e o
colesterol volta a passear em bandejas amarelas e vermelhas
pelo shopping. Todos voltam 跴 suas refei踥es, e quando
parece que voltei ao meu anonimato tradicional, uma voz
educada se dirige a mim.

- Vocestbem?

ele, o homem que eu desejei n緌 para o amor ou o sexo,
mas para me distrair enquanto mastigava. Recolho minha
bolsa do meio dos farelos e secre踥es cuspidas na mesa.

- Estou 鏒ima, obrigada. Se o senhor me dlicen蓷,
tenho um compromisso agora.

- Vocestava me olhando, antes do seu inc獽odo. Fiquei
em dida e resolvi perguntar. N鏀 nos conhecemos?

Minha quase-morte chamada de inc獽odo. Examinei o
rosto do homem, boca, nariz, maxilares, queixo, evitando
encontrar os olhos.

- Desculpe, confundi o senhor com um tio meu. Foi engano.

- Logo vi que n緌 era comigo. Uma mo蓷 simp嫢ica como
voc..
Simp嫢ica era um pouco demais, numa situa誽o como
aquela. Se o homem quisesse mesmo uma chance, deveria ter me
adjetivado de linda ou de espetacular ou de sensacional, mesmo
que eu jamais acreditasse na sinceridade de suas palavras.
Tarde demais para ele.

72 73

O pai de fam璱ia sem fam璱ia ainda fez uma tentativa.
- Quer ficar com o meu telefone? Quem sabe, vocficando
com saudades do seu tio, pode ligar para mim. Eu adoraria.
Virei as costas e sa Assim como a absoluta maioria das
mulheres, as feias tamb幦 desprezam esp嶰imes do sexo
masculino que n緌 demonstram amor-pr鏕rio.
Sno 獼ibus lembrei do meu carrinho cheio de
porcarias, esperando por mim em algum canto do supermercado.
Desci, atravessei a rua e voltei ao shopping ainda a tempo de
ver o homem sozinho na parada de 獼ibus, o colete levantado
na parte da frente para refrescar a barriga.



4.7. Zico

Nada mais babaca que um escritor escrever sobre um
escritor, provavelmente seu alter ego, aproveitando para
colocar na boca e na vida do personagem tudo o que n緌 teve
coragem de falar e viver ele mesmo. Era isso que pensava meu
colega Zico Farias, redator da ag瘽cia de publicidade onde
agora eu trabalhava como assistente de recursos humanos do
departamento financeiro, gra蓷s ao meu curso de
computa誽o e boa vontade do seu Armando, meu chefe, que havia me
contratado, e minha inexperi瘽cia. Foi um bom neg鏂io
para os tr瘰. Para merecer a confian蓷 do seu Armando, n緌
apenas aprendi todas as tarefas do meu novo of獳io como fui
al幦, estudando nas noites e nos fins de semana tratados
inteiros sobre administra誽o de pessoal e de custos. Eu me
sa燰 t緌 bem na fun誽o que cheguei a ganhar o pr瘱io de
Funcion嫫ia do Ano na festa de fim de ano. Pela primeira vez, eu
ser uma mulher feia n緌 atrapalhava o meu desempenho e as
minhas rela踥es pessoais. E foi assim, com uma
autoconfian蓷 atent緌 in嶮ita, que fiquei amiga de Zico Farias.
Zico desprezava hist鏎ias com escritores no papel
principal, embora elas fossem suas preferidas e seus autores de
cabeceira, todos, jtivessem usado deste recurso para
prendlo cama ata tima p墔ina. Desde pequeno, Zico s conseguia ler assim, deitado, a ponto de passar tr瘰 dias inteiros
levantando da cama apenas para mijar e beber Coca-Cola,
beber Coca-Cola e mijar, em um ciclo aquoso que sterminava
quando o livro chegasse ao fim.
Zico Farias era um escritor ainda n緌-publicado que
escrevia sobre prostitutas, bandidos, desocupados,
malandros, pobres em geral e drogados, sempre com base nos seus
conhecimentos emp甏icos, ele que a vida inteira havia morado
com os pais no mesmo apartamento de classe m嶮ia alta.
O mais pr闛imo que Zico tinha chegado da realidade que
retratava em sua obra foi mudar para o quarto de empregada
do apartamento, sem esquecer de instalar ali um ar
condicionado. Nesse quarto ele passava suas noites escrevendo,
escrevendo, escrevendo, com o ambiente outrora prolet嫫io
inspirando seus romances sobre os menos favorecidos e o ar
regulado para gelar o ambiente a doze graus, como se ele
estivesse sempre em um estio no outono de Nova York.

Foi procurando um personagem para come蓷r seu novo
livro que Zico tomou duas decis髊s: pedir demiss緌 da
ag瘽cia e escrever sobre um escritor.

- Preciso respirar, Ju. A propaganda estsugando minha
alma. Decidi largar tudo e escrever, integralmente, sobre um
escritor como eu, com sete livros in嶮itos e dois publicados em
edi踥es do autor, com o subs獮io do pai do autor. Um escritor

74 75

que finalmente tem uma id嶯a genial e chama a aten誽o de
uma poderosa editora. Como eu sei que vai acontecer comigo.

Zico e eu come蓷mos a conversar por causa das
ineras visitas dele ao departamento financeiro, atr嫳 de
empr廥timos a serem descontados de futuros sal嫫ios. O problema que os vales eram t緌 freqntes, dois ou tr瘰 por semana, que
n緌 lhe sobrava sal嫫io a receber no final do m瘰, o que
recome蓷va o ciclo de empr廥timos e tornava suas idas ao
Financeiro cada vez menos espa蓷das. Foi analisando a situa誽o
econ獽ica de Zico que passei a aconselhlo e, em seguida,
virei sua confidente e melhor amiga. Ou era o que parecia.
Na verdade, eu estava apaixonada por ele e tinha secretas
esperan蓷s de ser correspondida. Est嫛amos t緌 pr闛imos
que eu ser uma mulher feia n緌 impedia meus sentimentos,
mesmo Zico sendo o tipo de cara que fazia sucesso com as
garotas bonitas. Conteo, era o que eu tinha a oferecer. Algo
que ele, como escritor, certamente saberia valorizar.

- Meu personagem n緌 vai morar com os pais,
obviamente, para que essa condi誽o n緌 diminua sua for蓷
dram嫢ica. Ele serum outkder, um contraventor, um rebelde com a
causa da literatura, sublocat嫫io de um c獽odo cheio de
vazamentos e baratas em um bairro humilde da cidade, na casa de
uma velha obrigada a lotear a casa para complementar a
pens緌 do marido. Um personagem, enfim, digno de despertar a
admira誽o da humanidade. E de Daniela.

O biscoito amanteigado com recheio de doce de leite que
eu comia entalou na minha garganta. Zico jhavia
mencionado a tal Daniela algumas vezes, mas eu nunca tinha dado
aten誽o, ou significado, 跴 cita踥es.

- E quem .. Daniela?

- Nunca contei para vocda garota que me nega todas as
chances por eu ser um capitalista aproveitador e acomodado,
como ela diz?

Teria preferido que ele continuasse sem contar, mas era
tarde. Ouvi a hist鏎ia de Zico mastigando com raiva os
amanteigados que ainda restavam no pacote.

Daniela era formada em antropologia na faculdade federal,
mas dava aulas de introdu誽o filosofia para crian蓷s do
ensino m嶮io. Morava com mais quatro antrop鏊ogas em um
apartamento perto da casa de Zico, que a viu pela primeira vez
no ponto de 獼ibus, ele esperando um 鰒ibus ou um t嫞i, o
que passasse primeiro.
Nas palavras de Zico, Daniela era linda, apesar do jeans
de fundilho ca獮o e da camiseta velha, com a foto desbotada de
uma candidata a vereadora n緌-eleita, usada para fora das
cal蓷s e sem suti A pasta com o el嫳tico arrebentado que levava
na m緌 certamente explodiria a qualquer momento, tamanha
a quantidade de papel que continha, e a mochila velha
pendurada nas costas deixava mostra cadernos, livros e mais papel
amassado. O conjunto talvez n緌 interessasse a um
observador menos atento, mas Zico, acostumado a procurar beldades
nos bares mais sujos, podia afirmar que aquela era a garota
mais bonita que jhavia estado a trinta cent璥etros dele.
A garota mais bonita da cidade, Zico disse, fazendo com
que eu enfiasse tr瘰 biscoitos na boca de uma svez. Na
ocasi緌 eu n緌 sabia, mas, algum tempo depois, iria descobrir
que ele estava, na verdade, copiando Bukowski.
Por causa dela, Zico deixou o 獼ibus passar cheio de
lugares vagos e ignorou os t嫞is vazios que diminuiam a marcha

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ao vlo, para entrar no 獼ibus lotado que chegou ao ponto em
seguida.

- Eu precisava me aproximar sem parecer um desses
tarados especialistas em abordar usu嫫ias do transporte
coletivo, Ju. E a oportunidade veio quando ela deixou cair uma das
suas incont嫛eis folhas escritas na frente e no verso. Me
abaixei para pegar, batendo a cabe蓷 em v嫫ias bolsas e levando
um apert緌 involunt嫫io de um senhor, que fez meu queixo
encostar no local ocupado pelas bolas dele. Consegui apanhar
a folha, amassada e pisoteada, e a entreguei para ela.

- Muito obrigada. Vocsalvou a minha vida.

Zico n緌 tentou descobrir o que havia no papel para que
a garota reagisse daquela forma. Ainda assim, ato centro da
cidade e na qualidade de salvador de uma donzela em perigo,
tratou de perguntar o nome de sua v癃ima, Daniela, trocar
telefones e recolher todas as informa踥es que pudessem ser
eis para planejar o passo seguinte: convidla para sair.

- Sabe, Dani, hoje eu jacordei pensando em pegar um
cineminha...

- Pode me chamar de Daniela. Eu odeio esse h墎ito
pequeno-burgu瘰 de diminuir o nome das pessoas.

Foi com essa justificativa, os h墎itos pequeno-burgueses
de Zico, que Daniela jamais aceitou seus convites para sair.
Pior: que nunca levou a s廨io a literatura que ele fazia,
acusando-o de escrever sobre as classes exclu獮as apenas para
enriquecer custa delas.

- Vocn緌 sabe o que passar fome. N緌 sabe o que estar desempregado hanos, sem sequer a esperan蓷 de uma
coloca誽o. N緌 sabe o que sustentar cinco, seis filhos,
ganhando sal嫫io m璯imo. N緌 sabe o que significa ser negro
no nosso pa疄. Ou sabe?

- N緌, gra蓷s a Deus.

N緌 que Daniela soubesse, mas o fato de se comportar
como se fosse negra, faminta, cheia de filhos e sem nenhuma
oportunidade de estudo ou trabalho bastava para que ela se
considerasse melhor que Zico e que todos os burgueses. Ou
todos que ganhassem mais de dois sal嫫ios m璯imos na
carteira, para simplificar.
O pacote de biscoitos havia terminado htempos quando
Zico encerrou a hist鏎ia, contando que publicar um romance
seria sua ica chance de conquistar Daniela. E ent緌 comla
em um ambiente mais do que apropriado, as depend瘽cias de
empregada onde ele vivia. Naquela noite chorei como hmuito
n緌 sentia vontade, a pobre mulher feia apaixonada por um
homem interessado na garota mais bonita da cidade. Tanta
墔ua saiu do meu corpo que me senti fraca e sem 滱imo, a
ponto de levantar para comer uma caixa inteira de goiabada
etiquetada com o nome de Catilene. No dia seguinte, t緌 logo o
supermercado abrisse, eu trataria de repor o doce. Jminhas
esperan蓷s de ficar com Zico, essas sum milagre do S緌 Judas
Tadeu, o cara das causas imposs癉eis, conseguiria devolver.

Na manhseguinte, mal cheguei ao trabalho, Zico estava ao
telefone descrevendo cada minuto da sua noite.
Depois que nos despedimos, ele foi para casa e come蔞u
seu novo livro com o personagem-escritor, que chamou de
S廨gio, seu nome de batismo, tendo uma grande id嶯a para um
romance. As horas seguintes Zico passou tentando imaginar
que id嶯a seria essa. Sentado diante do computador, a cabe蓷
mais vazia que a tela, ele constru燰 argumentos que eram
destru獮os antes mesmo de serem formulados.

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- Foi um inferno, Ju. Levantei quinhentas vezes para
beber caf Coca, 墔ua, o licor caseiro de maracujque minha
avfaz e a tima lata de Miller, escondida na gaveta das
verduras. Devia ser do meu pai. Liguei a televis緌, o r墂io, o CD,
apaguei a luz, acendi um incenso, deitei, dormi, pedi uma
pizza de calabresa forte, liguei para tr瘰 amigos que n緌
estavam e, no fim, fui para a Cidade Baixa encontrar algum
conhecido, ou algum desconhecido. Eu sn緌 queria ficar sozinho.

- Vocpodia ter me ligado, Zico.

- Pensei nisso, mas n緌 quis incomodar ainda mais voc

- Eu teria adorado.

Ele ficou em sil瘽cio por alguns segundos, n緌 sei se
lamentando a liga誽o que n緌 fez ou buscando significados
na minha rea誽o. Talvez Zico, apaixonado por uma garota t緌
bonita, ficasse assustado por ser o objeto do meu amor. Eu
deveria ser mais cuidadosa nas pr闛imas vezes, n緌 me
mostrando dispon癉el demais para n緌 levantar suspeitas sobre
os meus sentimentos.

- Vou lhe dizer o que hde errado com o meu livro, Ju.

- N緌 tenho nada de importante para fazer aqui no
departamento agora, Zico. Vou para a sua casa e vocme fala
tudo.

Aleguei uma dor de est獽ago fulminante para o seu
Armando e sa Ningu幦 nunca duvida das dores de est獽ago
fulminantes das gordinhas. Foi assim que o resto da hist鏎ia
Zico contou com a cabe蓷 apoiada nas minhas coxas, com
algumas pausas para comparlas aos enormes travesseiros
de penas em que deitava a cabe蓷 na inf滱cia, quando dormia
na casa dos av鏀.

- Se o escritor S廨gio tivesse uma id嶯a espetacular
para um grande romance, a id嶯a seria minha, e n緌 dele, e o
romance seria meu, e n緌 dele, e quem chamaria a aten誽o de
uma editora seria eu, e n緌 ele, e tudo seria verdade e n緌 uma
fic誽o dentro da fic誽o. Entendeu, Ju?

Dito isso, Zico ficou de olhos fechados e im镽el, como que
esgotado pelo esfor蔞 de reconhecer um problema em sua
grande id嶯a. A boca meio aberta deixava ver a ponta da l璯gua
e a arcada inferior, sem obtura踥es, ao contr嫫io da minha
pr鏕ria dentadura. Cheguei a ter onze c嫫ies de uma svez,
combina誽o dos pacotes di嫫ios de jujubas e do meu medo, beirando
o p滱ico, de ir ao dentista. Minha m綣 contava que, aos nove
anos e forte como um adolescente de quinze, cheguei a bater
no doutor Edson, dentista da nossa fam璱ia, quando ele se
aproximou dos meus dentes cheios de buracos com a broca
zumbindo e espirrando 墔ua gelada. Depois do incidente,o doutor
Edson se recusou a atender qualquer membro da fam璱ia Costa
e minhas c嫫ies n緌-curadas se transformaram em dolorosos e
dispendiosos tratamentos de canal. Sem minha ex-chefe, a
doutora Suzane, e seu consult鏎io de odontopediatria, onde
quase perdi os dedos segurando as bocas dos pequenos
cariados, provavelmente eu fosse uma mulher feia e sem molares,
caninos e incisivos, hoje em dia.
Sempre que agia por impulso eu acabava me
arrependendo, mas naquele instante n緌 tive didas do que deveria
fazer. Alguns dir緌 que me aproveitei da fragilidade de Zico
para beijlo, e foi isso mesmo. Ele ainda tentou soltar a
cabe蓷, mas a press緌 do meu corpo inteiro debru蓷do sobre
sua boca tornou imposs癉el qualquer movimento. Foi um
beijo comprido, regulado exclusivamente pela minha
vontade. Zico levantava as m緌s e emitia sons abafados, talvez
afogado pela minha saliva. Eu ignorava os sinais e continuava
beij ando.

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Quando terminei, ele levantou de um pulo e disse algo
sobre ter um compromisso com uma editora. Fingi acreditar e
peguei minha bolsa para sair. Ent緌 Zico passou os pr闛imos
vinte dias sem me procurar, e no vig廥imo primeiro, eu onze
quilos mais larga por solid緌 e ansiedade, voltou.

O que me falou transcrevo a seguir, como se ele mesmo
contasse:

"Em uma semana eu tinha quatro p墔inas escritas e nenhuma
id嶯a para a pr闛ima linha. Muito pouco para quem, chamado de
vagabundo pelo pr鏕rio pai, respondeu se dizendo um oper嫫io
das palavras. Talvez influ瘽cia de Daniela, que n緌 sa燰 da
minha cabe蓷.

Resolvi ir ao centro da cidade comprar revistas e jornais.
Passava das cinco e, para minha surpresa, vi Daniela no ponto
de 獼ibus, fones nos ouvidos e os p廥 batendo sem ritmo na
cal蓷da.

- Jsei, vocestouvindo Oswaldo Montenegro.

Daniela balan蔞u a cabe蓷 sem levantar os olhos, em um
movimento que tanto podia significar sim, quanto n緌, quanto
vmerda, seu burgu瘰 idiota, e em seguida esqueceu que eu
existia. Um t嫞i apareceu no momento em que o 獼ibus
chegava parada. Quando Daniela e os outros prolet嫫ios jse
prepararam para embarcar, fiz sinal para o t嫞i parar, mesmo
sabendo a falta que os quinze reais da corrida me fariam.

- Quer carona, Dani?

Eu a chamei assim de prop鏀ito e, se a sociedade fosse
regida pela coer瘽cia, deveria esperar que a garota me
acertasse um chute na cara. Mas Daniela apenas saiu da fila, sem
vacilo algum, e ficou parada ao meu lado, esperando que eu
abrisse a porta e afastasse o banco dianteiro para facilitar-lhe
a entrada. Ia sentar ao lado dela quando veio a ordem.

- Vno banco da frente, para ningu幦 pensar que n鏀
nos achamos melhores que o motorista.

Ignorei a vontade de Daniela e fui ato centro
encostando minha coxa na dela, e interrompendo a cada minuto a
mica que ela ouvia para falar do meu livro, do mentiroso
interesse de uma editora conceituada pela minha obra, da
minha participa誽o em uma antologia inventada e,
finalmente, dos meus planos, renovados, de convidla para sair.

- Cinema hoje e depois um xis, em pmesmo, em algum
trailer sua escolha. Sem Coca, claro, que eu tamb幦 n緌
suporto essas manifesta踥es do imperialismo.

Naquela noite ela n緌 podia, estava estudando para um
concurso da Secretaria Municipal de Educa誽o. Mas Daniela
ficou de me ligar, jque n緌 havia um nero onde eu pudesse
encontrla, e a id嶯a era sairmos juntos no pr闛imo s墎ado.

- Vou esperar, Dani... ela.

Agora que a classe dominante lentamente vencia as
resist瘽cias do povo, eu n緌 colocaria tudo a perder chamando uma
de suas representantes por um apelido capitalista.



Voltei inspirado para meu quarto de empregada e
escrevi dois cap癃ulos inteiros sobre os conflitos do escritor
S廨gio, desde sua sa獮a da casa dos pais ata instala誽o no
quarto cheio de infiltra踥es de um sobrado decadente. Parei
no momento em que ele, sentado em frente a um velho
computador 386, uma carro蓷 que jera obsoleta na 廧oca da sua
inven誽o, resolvia escrever sobre a garota que amava.

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N緌 era um tema in嶮ito, eu reconhecia, e talvez n緌
fosse interessante o bastante para uma editora, mas S廨gio
escreveria sobre Daniela, que no Livro se chamaria Manuela, e,
se eu n緌 progredisse urgentemente com a garota, veria seus
planos de um romance se resumirem a um conto. Na melhor
das hip鏒eses.



- N緌 trabalha. N緌 ajuda em casa. N緌 leva um copo sujo
para a pia. N緌 consegue editar nada. Dorme atas duas da
tarde em um s墎ado cheio de sol. Nem a barba faz mais. Aonde
esse tipo de vida vai levar voc Zico Farias? Ao Nobel de
Literatura? Bem, ou eu muito me engano, ou aposto que n緌.

Dediquei o serm緌 do meu pai, 跴 catorze e dezessete do
s墎ado em que eu finalmente sairia com Daniela, a S廨gio,
meu personagem e, vl alter ego. Um pouco de chatea誽o
seria il personalidade dele. T緌 logo as li踥es vespertinas
do velho chegaram ao fim, voltei ao quarto para escrever e
esperar a liga誽o. As seis da tarde, quando o telefone tocasse,
a voz de Daniela, mais aguda do que meus t璥panos
gostariam de ouvir, mas perfeita para gritar slogans em uma
concentra誽o de sem-terra, definiria a hora e quando e onde seria
o nosso encontro. Uma estrat嶲ia para deixla com a
sensa誽o de estar no comando da situa誽o, nessa primeira vez.

Dezoito horas. O telefone n緌 tocou.

Dezoito e dez. O telefone n緌 tocou.

Dezoito e quinze. O telefone n緌 tocou, mas ainda n緌
havia motivo para preocupa踥es. Na pol癃ica estudantil, quinze
minutos de atraso eram chamados de toler滱cia bolchevique,
prazo que tanto podia ser usado para fugir da repress緌 quanto
para ficar um pouco mais na cama ou para dois militantes se
comerem de p no banheiro da faculdade.

Dezoito e vinte, O telefone n緌 tocou.

Dezoito e vinte e cinco, O telefone n緌 tocou.

Dezoito e trinta, O telefone n緌 tocou.

Dezoito e trinta e tr瘰. O telefone tocou.

- Puxa, Daniela. Atonde eu sei, a toler滱cia bolchevique de
quinze minutos.

- Vamos nos encontrar 跴 nove e vinte na frente do 舥ion
para ver o timo do Costa-Gavras. Cada um paga o seu.

E desligou sem um beijo, como se, em vez de lazer,
estivesse tratando da invas緌 do velho cinema do centro da
cidade aonde ningu幦 mais ia, sDaniela, que certamente
era contra as salas dos shoppings.

Cheguei meia hora antes e comprei o ingresso dela.
Daniela apareceu linda, a n緌 ser pela roupa, saia de algod緌
floreado e a camiseta, jmeio gasta, de uma ONG contra o uso
de pele animal. Com um rosto e um corpo daqueles e um bom
banho de loja, como eu poderia proporcionar se meu Livro
estourasse na lista dos mais vendidos, Daniela era mulher
para deixar um cara satisfeito por bons cinco anos, no
m璯imo. Mesmo com o p廥simo figurino, eu me sentia orgulhoso
por estar com ela e slamentava o cinema quase vazio para
minha exibi誽o n緌 ser um sucesso completo.

O filme n緌 era mau, admito. No final, Daniela parou na
cal蓷da para opinar sobre cada cena, enquanto a rua pouco
movimentada ficava cada vez mais deserta. Achei que
chegava a hora de levla para um lugar mais seguro. Meu
quartinho de empregada, por exemplo.

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- Imposs癉el, Zico. Combinei de dormir na pens緌 do
cara com quem estou saindo. Ele ia panfletar atas onze,
agora jposso ir para l N緌 precisa me acompanhar ato
獼ibus. Obrigada pelo cinema e atqualquer dia desses. Foi
tudo 鏒imo."



Acompanhei Zico atseu quarto sem a necessidade de um
convite. Ele jentrou no quarto de empregada segurando os
meus peitos e, quando eu jestava nua e ajoelhada no meio
das suas pernas, disse que deletaria os cinco cap癃ulos em que
S廨gio Farias narrava sua vida desinteressante de escritor
apaixonado pela garota mais bonita da cidade. Bukowski j escreveu sobre isso com muito mais talento, ele disse.

- Amanhcome蔞 um novo romance sobre qualquer tipo
de pessoa, uma strip-teaser, um traficante de bom cora誽o,
um doador de s瘱en, uma empregada dom廥tica, um matador
de aluguel. Mas nunca mais sobre um escritor.
Hist鏎ias de amor com final feliz nunca deram bons livros,
Zico resmungou, antes de enfiar a barba na minha bunda. Mais
tarde ele abriu a porta de servi蔞 para eu ir embora sozinha.
E depois que eu sa nunca mais me procurou ou quis ser
encontrado por mim.


4.8. David

Fiz anivers嫫io ontem e jhalgum tempo noto em mim
algo que sempre percebi nas mulheres, nas feias e nas
bonitas: com o passar dos anos, os tra蔞s do rosto v緌
endurecendo, sofrendo transforma踥es, se modificando attomar
uma conforma誽o quase masculina. Basta reparar nas
mulheres de meia-idade e nas velhas para comprovar a verdade
desta observa誽o. Bocas ca獮as, olhos sem brilho, cabelos
mais ralos, manchas e sinais, alguns com grandes fios
pendentes. As mulheres terminam a vida parecidas com os
homens e sn緌 s緌 confundidas com eles por causa dos
vestidos estampados que usam.
Examinando atentamente meu rosto, sou for蓷da a
reconhecer que, no meu caso, o processo jcome蔞u. E ainda nem
completei trinta anos.
bem verdade que nunca fui dona de um rosto delicado,
desses de maxilares finos e l墎ios desenhados, mas agora o
quadro piorou. Uma penugem relativamente espessa cobre
toda a minha cis, denomina誽o em vigor apenas nas bulas
dos produtos de beleza que eu compro no supermercado.
"Espalhe suavemente pela cis para assegurar uma
apar瘽cia acetinada." Vai ver os p瘭os que aos poucos nascem da
testa atmeu queixo s緌 resultado dos cremes que venho
usando ao longo da vida. Preciso me acostumar com a id嶯a de
enxergar o Tony Ramos sempre que me olho no espelho.
Junto com os p瘭os, identifiquei tamb幦 um
alargamento nasal. Everton, meu irm緌 mais velho, sempre disse
que o nariz e as orelhas sparam de crescer com a morte. No
meu caso, talvez o aumento seja um problema 鏀seo, excesso
de c嫮cio causado por todo o doce de leite que comi desde o
meu nascimento. O fato que meu nariz ficou maior, mais
achatado e mais volumoso na parte superior, bastante
parecido com o que meu avGaspar, jfalecido, ostenta nas fotos
que cobrem as paredes da casa da minha m綣. Cujo rosto,
como n緌 poderia deixar de ser, lembra com triste fidelidade
as fei踥es do vovGaspar.

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Eu estava ficando com cara de homem e, como se n緌
bastasse, havia v嫫ias outras quest髊s est彋icas com que me
ocupar.
Minha largura, por exemplo.
Mulheres bonitas costumam apresentar peso
proporcional altura e, mesmo quando se excedem nas lasanhas e
chocolates, isso n緌 causa maiores transtornos do que n緌 entrar
em uma cal蓷 jeans apertad疄sima ou desistir, mesmo que
temporariamente, do biqu璯i de lacinho. Juma mulher feia
acima do peso tem mais perdas para chorar.
Se n緌 for impress緌 minha, meus colegas da ag瘽cia de
propaganda andam conversando menos comigo e com os
meus quilos a mais. Almo蔞 realmente sozinha em um buffet
livre, o que n緌 de todo mal. Posso me servir quantas vezes
quiser sem piadinhas ou olhares de recrimina誽o. Tamb幦
trabalho melhor, sem interrup踥es para contar o que fiz na
noite passada ou como foi meu fim de semana. As pessoas
costumam achar que a vida de uma gordinha feiosa se limita ao
hor嫫io comercial, o que atfaz algum sentido, na minha
atual fase. Seja como for, tenho toda uma agenda social
imaginada para relatar, se algum dia algu幦 se interessar em
perguntar por ela.
A quantidade de op踥es do meu guarda-roupa tamb幦
diminuiu e sinto saudades de duas ou tr瘰 blusas largas que
me acompanhavam jhavia algumas esta踥es. Mas dos
homens a falta que eu mais sinto neste per甐do em que meu
rosto vai virando o de um deles e meu tamanho extrapola a
cada dia o manequim GG, de Grande e Gorda, na livre
interpreta誽o do meu irm緌 Everton. Preciso procurar com urg瘽cia
no livrinho do plano de sae o telefone de um
endocrinologista, de um dermatologista, de um cirurgi緌 pl嫳tico e de um
cardiologista, este timo para tratar meu cora誽o do獮o de
abandono e solid緌. Tomara aqueles comprimidos de colocar
sob a l璯gua pudessem me ajudar.
Era acompanhada de todas essas tristezas que eu
almo蓷va na quarta-feira, quando algu幦 bateu levemente no meu
ombro.

- sua? Estava no ch緌.

Demorei a entender que era a mim que o homem alto,
moreno, de barba negra, um prato cheio de salada em uma
m緌 e minha bolsa amarfanhada na outra, se dirigia.

- N緌 sua? Ent緌 vou entregar para o gar蔞m.

- minha, claro, minha velha bolsa de estima誽o!

Velha sim, de estima誽o, jamais. Eu usava aquele saco
pu獮o por pura falta de iniciativa de entrar em uma loja e
comprar o que fosse. Apanhei a bolsa tentando esconder seu mau
estado.

- Muito obrigada, como posso agradecer?

- Jagradeceu, n緌 se preocupe. Tchau.

- N緌!

Minha voz fez com que varios clientes Interrompessem a
refei誽o e outros tantos retirassem as cabe蓷s de dentro das
cubas do buffet para me olhar. O homem alto, objeto do meu
grito, parou no meio do caminho e me olhou.

- Por favor, gostaria de lhe oferecer um suco ou uma
sobremesa ou um caf Ou um suco, uma sobremesa e um caf
Em agradecimento pela sua gentileza.

- Vocjagradeceu. Atoutro dia, garota.

Atoutro dia, ele disse, e ent緌 foi sentar sozinho em
uma mesa perto da janela. Garota, ele me chamou, e fiquei com
a impress緌 de ter notado uma ponta de carinho no modo
como a palavra foi articulada.

88 89

Garota.
Passei a tarde olhando com ternura para a bolsa
estragada. N緌 que eu costumasse me apaixonar pelo primeiro
homem bonito que juntava minhas coisas do ch緌, mas depois
de tantos meses sem nenhum acontecimento relevante
envolvendo pessoas do sexo oposto, aquela n緌 deixava de ser uma
oportunidade que a vida me apresentava. Amanheu voltaria
ao buffet, e depois de amanhe de amanh de amanhe de
amanh de amanhde amanhtamb幦. Eu chegaria ao
meio-dia e um segundo e ficaria latum segundo para as
duas da tarde todos os dias, sentada na mesa da janela em que
ele ficou, atencontrar o barbudo novamente.
Pensei isso alisando os p瘭os que cobriam meu pr鏕rio
queixo. Se eles continuassem crescendo, e supondo que
minhas inten踥es com o barbudo se concretizassem, eu corria o
risco de acabar dividindo o mesmo pincel de barba com ele.
N緌 foi uma id嶯a rom滱tica. Melhor procurar, junto
com o endocrinologista, o dermatologista, o cirurgi緌 pl嫳tico
e o cardiologista, uma boa depiladora tamb幦.
Na quarta-feira seguinte, depois de uma semana inteira
almo蓷ndo durante duas horas sem parar, na esperan蓷 de
ver o barbudo, finalmente consegui encontrlo. T緌 logo ele
se acomodou, segurei minha bolsa velha como um trof徼 e
iniciei a abordagem.

- Oi, lembra dela?

- Falou comigo?

O barbudo olhou primeiro para a bolsa suja e rasgada,
depois para mim, depois para a bolsa, depois para mim, e n緌
reconheceu nenhuma das duas.

- Huma semana, vocjuntou essa BOLSA e entregou
para MIM. N緌 lembra mais?

- Desculpe, garota. De fato, seria dif獳il n緌 lembrar de voc

Come蔞s s緌 assim, ou promissores, no caso das
mulheres bonitas, ou apenas come蔞s, no caso das feias. Importante
que eu havia feito contato e agora estava transferindo meu
prato bem-servido para a mesa dele.

- Vou sentar com voce assim a gente se conhece melhor.
Cuide da minha bolsa, sim?

Deixei minha bolsa vergonhosa na cadeira, sem esperar
pela resposta do barbudo. Quando voltei, ele jestava diante
de um frugal prato de salada.

- Vocvegetariano?

- N緌, mas n緌 me excedo nas carnes e prefiro as magras.

Podia ser uma indireta, mas preferi ignorar.

- Ainda n緌 nos apresentamos. Meu nome Ju. Muito
prazer.

- David. Prazer.

- Que nome lindo. Seus pais s緌 ingleses?

- N緌.

- Americanos?

- N緌.

- Seus av鏀 eram estrangeiros?

- Bageenses, do interior do Rio Grande. Toda a nossa
fam璱ia de l

- Que interessante, David.

Ele ficou em sil瘽cio, apenas mastigando suas rulas e
agri髊s.

- Os vegetais andam caros, n緌? O governador disse que
por causa da seca.

- Conversa de pol癃ico.

90 91

Era preciso estabelecer o di嫮ogo r嫚ido. Olhando para o
corpo esguio do barbudo, tudo indicava que ele n緌 repetiria
o prato. Eu tinha poucas folhas de alface, dois tomates-cereja
e uma m疄era couve-flor para me aproximar.

- Aquele dia que vocjuntou minha bolsa, puxa, voc nem sabe o favor que me fez. Imagine que eu estava com todo
o dinheiro da empresa para depositar.

Mentira, mas pelo menos ele olhou para mim.

- N緌 diga. Voctrabalha com valores?

- Sou gerente financeira. Muito prazer.

Ofereci a m緌 a David, que largou o garfo para apertla,
sem saber se devia retrucar com um "prazer, sou analista de
sistemas". Como ele n緌 falasse nada, perguntei.

- Vocfaz o quE onde?

- Sou promoter.

- Como assim?

- Promoter. Em uma casa noturna. Recebo as pessoas,
escolho quem entra e quem fica na rua, fa蔞 a divulga誽o das
festas. isso.

- Que interessante, David.

Ele cortou fora o talo da couve-flor antes de levla boca. Entendi que a conversa estava chegando ao fim.

- Quer que eu guarde lugar para vocno almo蔞 de amanh

- Salmo蔞 aqui 跴 quartas. Saio do meu psiquiatra e
venho para c Nos outros dias, durmo atas tr瘰. Passo as
madrugadas acordado por causa do meu trabalho.

- Onde fica a sua boate?

- Casa noturna. Guarde o cart緌. N緌 temos
consuma誽o de ter蓷s a quintas. Atqualquer hora.

Atqualquer hora, n緌, David. Atquinta noite,
quando eu vou convidar Catilene para ir na casa noturna em que
vocpromoter. Lemon Dream, diz o cart緌. Sonho Lim緌?
O que significa isso? Aposto que o pessoal da ag瘽cia teria um
nome mais inteligente para sugerir.
Passei a tarde me confundindo com as contas do final do
m瘰, atseu Armando perder a paci瘽cia com meus erros e
me despachar para a xerox. David. Lemon Dream. Por que
serque o barbudo consultava um psiquiatra? Assim, nos
primeiros contatos, ele parecia ser um homem absolutamente
normal. Catilene, deixe seu vestido preto com brilhinhos na
嫫ea de servi蔞 para arejar. Amanhvocvai comigo desven-
dar os segredos de David.
Catilene n緌 foi comigo. Alegando primeiro os estudos,
depois cansa蔞, depois sono e finalmente que n緌 achava
#
ir sozinha para a noite, de t嫞i, atum galp緌 perto do
aeroporto, em uma zona retirada da cidade. Passava das onze
horas e fiquei com o celular do motori蓨a. para a hip鏒ese de
n緌 conseguir uma carona com David na volta.
O Lemon Dream era uma caixa de concreto pintada de
verde-lim緌, com dezenas de pessoas em uma fila, todas
parecendo se divertir com a espera para entrar. Vendedores de
cerveja tratavam de abastecer os clientes com suas caixas de
isopor encardidas e a mica que vinha do interior da casa era
suficiente para que muitos dan蓷ssem na cal蓷da. Uma gorda
de minissaia pregueada e tran蓷s era a mais animada,
empurrando os outros com passos de dan蓷 que lembravam
movimentos de luta livre. Vez por outra ela derrubava algu幦, e
ent緌 a fila inteira gritava.

- Super-Nani, uh, uh.

Fiquei v嫫ias posi踥es atras da Super-Nani, cuidando
para n緌 ser atingida por seus golpes. Ela devia ser uma figura

92 93

conhecida nas filas da Lemon Dream e n緌 teve problemas
quando finalmente chegou porta. Quarenta minutos
depois, um seguran蓷 grande e vermelho decretou que eu
n緌 entraria.
Eu n緌 havia passado por tantos obst塶ulos para voltar
para casa sem falar com David.
- A casa estcheia?
- Vai ficar.
- Quero entrar agora.
- Todos querem.
- Eu conhe蔞 o David.
- Todos conhecem, gordinha.
- Pode chamlo, por favor?
- Espere ali ao lado, junto com os amigos do David.
- Ele vem me buscar?
- Claro que sim. A moreninha de piercinq pode entrar.
Fiquei junto com a turma chamada de Amigos de David
pelo seguran蓷, todos barrados como eu. Olhando para eles,
eu n緌 conseguia entender os crit廨ios da Lemon Dream para
definir suas personas non gratas. Isolados em um canto da
cal蓷da, os Amigos de David reuniam jovens de touca de l
tr瘰 amigas com os cabelos alisados e enormes brincos de
argola, um gay espalhafatoso, v嫫ias pessoas de 鏂ulos
escuros e um casal de meia-idade. Eu podia mesmo dizer que era a
ica no grupo a ser uma potencial discriminada por
pertencer a alguma minoria, ou duas, para ser mais exata, a das feias
e a das obesas, embora minha quase certeza de que 廨amos
maioria no mundo. Se David aparecesse para me resgatar, eu
perguntaria a ele que tipo de pessoa seria recomend嫛el
algu幦 nascer para entrar sem traumas na Lemon Dream.
E ele apareceu.
Eu estava hpouco mais de meia hora esperando,
quando o vi dando instru踥es na porta.
- David!
O barbudo olhou e eu segurei bem alto a bolsa azul-clarinho
seminova que pedi emprestada para minha colega Guacyra.
Ele n緌 reconheceria a bolsa, mas com certeza lembraria do
gesto.
Mostrei todo o meu desprezo ao seguran蓷 quando
passei para o interior da Lemon Dream conduzida por David. L dentro, meus ouvidos doeram com o som alto demais e meus
olhos n緌 conseguiram mais ver, tanto pelo breu local quanto
pelos fachos de luz ofuscantes que varriam o ambiente de
quando em quando. Eu n緌 sabia sequer se David ainda
estava comigo ou n緌. Tateando, consegui encontrar uma
parede e fiquei encostada l rezando para que as l滵padas se
acendessem e eu recuperasse o rumo.

- Cansada?

Imposs癉el ver quem perguntava, Imposs癉el saber se
era para mim que perguntavam.

- Falou comigo?

Em resposta, algu幦 pegou minha m緌 e come蔞u a
brincar com as gordurinhas dos meus dedos.

- So sweet...

Avoz sussurrada veio de um plano mais baixo que o da
minha cabe蓷. Senti minha m緌 se umedecer de repente.
Algu幦 que eu n緌 enxergava lambia meus dedos um a um,
assoprando-os com suavidade depois. Com a m緌 que restava
livre procurei o rosto do meu sedutor. Ou seria sedutora?
Era um homem e tinha o rosto coberto por uma barba tao
espessa quanto macia. Sim, David ainda estava comigo, talvez
sentado no ch緌, o que explicava eu ter encontrado seu rosto na

94 95

altura dos meus peitos. E como estes se localizavam um tanto
mais abaixo do lugar convencional, eu seria mais exata se
dissesse que o barbudo alcan蓷va, no m嫞imo, a minha cintura.
E se fosse David ajoelhado aos meus p廥?
Puxada pelos cabelos, desci atencontrar uma boca com
cheiro de cerveja e, mais ao fundo, pizza ao alho e 鏊eo.
Quando cansei de beijar o barbudo toda curvada, sentei ao lado dele
e continuamos nos beijando atas centenas de luzes da
Lemon Dream se acenderem de uma svez.

- Sacanagem, meu irm緌. Qual

A claridade revelou um cara de cabelos e barba
vermelhos, pequeno e magro, praticamente sentado no meu colo.
O contr嫫io teria sido fatal para o homenzinho.

- Conhe蔞 voc

- Pode me chamar de Little Fire.

Little Fire levantou esfregando os olhos. Eu sentada e ele
em p 廨amos quase da mesma altura.

- Legal te conhecer, guria. A gente se vna noite.

Ele pulou para beijar meu rosto. Lembrei imediatamente
de Pipico, o chihuahua avermelhado de minha prima
Tiasmina, que saltava nas pernas de todos em busca de um osso ou
um afago. Em lugar de pedir meu telefone ou de apertar
minha m緌 ou apenas dizer atlogo ou adeus, Little Fire se
despediu de um jeito peculiar.

- Apaguei!



N緌 vi David entre os euf鏎icos e os b瑿ados que deixavam a
Lemon Dream. Muitos seguiam em grupos na dire誽o do
aeroporto. com certeza para pegar o trem. Sem mala e com aquelas
roupas, duvido que fossem passageiros de algum v璺.
Eram quase seis da manhquando cheguei em casa. Eu
tinha reuni緌 com o seu Armando 跴 oito e meia e preferi
ficar acordada para n緌 perder a hora. Tomei um cafda
manhforte e cal鏎ico e comi boa parte dos p綣s e biscoitos
etiquetados com o nome de Catilene. 龍 oito eu jestava na
ag瘽cia, dormindo em cima do meu computador. Tomara que
n緌 fossem muito os relat鏎ios a conferir e os neros a
confirmar, em uma sexta-feira que prometia ser longa.
E n緌 foi.
A reuni緌 com o seu Armando tinha o objetivo de me
demitir. Ele alegou meus sucessivos erros e as desconfian蓷s
geradas por eles para encerrar meus quatro anos no
departamento financeiro da SCD Comunica誽o.

- A ag瘽cia vai pagar aviso pr憝io. Vocestdispensada
a partir de agora.

Sasem enviar pelo correio eletr獼ico o tradicional
comunicado de quem leva um pe na bunda:

"Prezados colegas,

Estou partindo para novos desafios. Gostaria de
agradecer avoc瘰 e, em especial, aos meus chefes, por tudo o que aprendi
neste per甐do. Abaixo segue o meu telefone, para que
continuemos mantendo contato."

Seu Armando teria que passar sem o meu agradecimento
fingido e meu novo desafio seria estar em casa o dia inteiro sem
engordar mais cem quilos, assistindo a televis緌 e comendo
para passar o tempo.

96 97

Chorando, liguei para minha m綣 do primeiro orelh緌 e
contei o infortio. Ela insistiu para que eu fosse
imediatamente para a casa onde cresci e fui feliz.
Onde cresci, melhor dizendo.
Continuei chorando no colo dela, no ombro do meu pai,
nos ouvidos do meu irm緌 Everton e no quarto do ca蓰la
Emerson, que estava desaparecido havia quatro dias. Tomara
que n緌 tivesse morrido, atmais por mim do que por ele.
Minha cota de sofrimento jestava preenchida, com o
epis鏚io da demiss緌.
- N緌 morreu, n緌. Ele agora vive assim, quatro dias
fora e um em casa, metido com uma dona que tem dois filhos.
J jeu corto as asinhas dele. Seu irm緌 estpensando que
isso aqui hotel? Ah, quando ele aparecer. N緌 queira estar na
pele dele, Ju.
Desde pequena eu ouvia minha m綣 dizer que n緌 era
nossa empregada e reclamar sobre o quanto n鏀 廨amos
imprest嫛eis e que a casa n緌 era lavanderia ou restaurante
para nos fornecer tudo na hora em que quis廥semos. Desde
pequena eu vivia com a impress緌 de morar n緌 na minha
casa, mas no reino da minha m綣, onde as crian蓷s sdavam
trabalho e traziam preocupa踥es. Imposs癉el saber se havia
marido e filhos no meu destino para desmentir a tese que
constru mas, atprova em contr嫫io, eu considerava a fam璱ia o
timo lugar do mundo para uma crian蓷 se sentir importante
e necess嫫ia. Talvez, ao fim do meu estudo sobre a sexualidade
da mulher feia, eu escrevesse um livro sobre o assunto.
Carandiru Parte II, um relato sobre a vida em fam璱ia.
Deixei minha m綣 falando da ingratid緌 de Emerson e
fui para casa. A casa de Catilene, na verdade. No caminho,
comprei o jornal para iniciar a busca pelos classificados. Eu
precisava de um novo sal嫫io para pagar minha parte no
aluguel ou seria demitida do apartamento tamb幦. Catilene n緌
era o tipo de pessoa que se comovesse com as desgra蓷s sociais
do pa疄, como a minha fome e o meu desemprego.
N緌 pensei mais em David ata pr闛ima ter蓷-feira
anoitecer. Todas as quartas o barbudo almo蓷va no buffet a
quilo depois do psiquiatra, segundo o pr鏕rio. Jeu estava
almo蓷ndo todos os dias na casa dos meus pais, para minha
economia e preju瞵o deles. Ainda assim, iria ao buffet para ver
David. Podia ser a tima vez e eu queria me despedir.
Ele chegou quase duas da tarde, mas dessa vez eu n緌
tinha pressa. Pude esperlo calmamente, comendo
vorazmente e fazendo valer cada centavo gasto no almo蔞, At guisado com quiabo experimentei.

- Guardei lugar para voc

David agradeceu minha gentileza e foi direto se servir.

- Muito legal sua boate.

- Casa noturna. Mas n緌 mais minha. Sade lna
quinta passada.

- Na noite em que eu fui? O que aconteceu?

- Estou partindo para novos desafios. Aproveitei para
rever tudo. Hoje larguei meu psiquiatra e em breve mudo de
endere蔞 tamb幦.

Assim como eu, David havia levado um pna bunda e
estava cortando despesas. sque n緌 ia confessar isso para
mim. O que nunca houve entre n鏀 terminava
melancolicamente naquele momento. Tambem ele n緌 tinha mais raz髊s,
nem dinheiro, para almo蓷r no buffet ou manter um padr緌
de vida de assalariado. Serque ao menos ele tinha os pais
vivos para filar as refei踥es, como eu?

- E onde vocvai trabalhar agora?

98 99

- Estou analisando propostas.

Traduzindo: David n緌 tinha perspectiva alguma. Se ele
dissesse que ia ser consultor, eu saberia que estava acabado.
Pude aprender na ag瘽cia que este o destino de todo
profissional em vias de ser demitido ou no desvio completo. lque
tipo de consultoria presta tanta gente que n緌 exatamente
vencedora, isso eu n緌 cheguei a entender.

- Serei consultor. Vai ser muito melhor para a minha
carreira.

David sai da hist鏎ia aqui, sem nunca ter sido mais do que uma
esperan蓷 para mim. N緌 soube o que ele pensava, n緌
descobri o que queria, nem fisicamente o conheci, tanto que passei
uma noite inteira com o barbudo errado, enquanto imaginava
beijlo. E se foi, no balan蔞 final, um nada na minha hist鏎ia
por que dedicar um cap癃ulo a ele?
Por raiva de mim.
da psicologia das mulheres idealizar a m璯ima
possibilidade de amor que se apresente. E atmesmo das que t瘱
probabilidade zero, caso da feia que gosta do cara mais
bonito da aula. Se houvesse um censo de quantas vezes uma
mulher se apaixona por uma miragem ao longo da vida, os
neros, com certeza, surpreenderiam os pesquisadores
mais experientes.
David ter juntado minha bolsa esfarrapada do ch緌 foi o
suficiente para eu perder o sono por ele. Para eu persegui-lo no
buffet, gastar uma fortuna em t嫞is, errar a contabilidade da
empresa em que trabalhava, sonhar barbaridades a qualquer
momento do dia, hor嫫io comercial inclu獮o. Algu幦 jdisse
que as mulheres n緌 se apaixonam por uma pessoa, e sim pelo
amor. Eu arriscaria um adendo: e as mulheres feias n緌 se
apaixonam pelo amor, e sim por um fiapo de amor-pr鏕rio.
Feitas tais considera踥es e esclarecendo-se que elas se
baseiam t緌-somente na minha pr嫢ica, sem o apoio te鏎ico
da antropologia ou da sociologia ou da psicologia ou de
qualquer outra ci瘽cia, David deve estar hoje prestando
consultoria em algum lugar do mundo. E se n緌 fosse eu ter lembrado
dele ao encontrar minha velha bolsa amarfanhada no fundo
de um arm嫫io, eram grandes as chances de que n緌 figurasse
nestas p墔inas, como n緌 figurou na minha vida.


4.9. An獼imo Dois


Eu morava sozinha hmenos de um m瘰, depois de onze
anos sob o jugu de Catilene. Nesse per甐do tive varios
empregos diferentes, mudei de cabelo ineras vezes sem que isso
causasse altera踥es positivas na minha apar瘽cia e estive
apaixonada na maior parte do tempo. Geralmente sem ser
correspondida.
Meu novo apartamento ficava perto do meu novo local
de trabalho. Alias, aluglo sfoi possivel porque ele
pertencia m綣 de uma colega que logo virou minha melhor amiga,
Aldomara. Dona Luzimara, a m綣 dela, dispensou fiador e
demais burocracias por confiar na recomenda誽o da filha.
E assim eu passei a morar em um apartamento de dois
quartos, pagando quase o mesmo que Catilene me exigia a cada
final de m瘰, a mesquinha.
No come蔞 foi estranho me ver em um espa蔞 t緌
grande, eu que estava acostumada com as sobras de Catilene, o
quarto menor, a prateleira vaga na geladeira, o banheiro s
100 101

quando ela n緌 precisasse usar, jamais um convidado meu em
casa. Ent緌 descobri, aos trinta e dois anos, que nada se
compara a ser dona da pr鏕ria vida. Eu ocupava meu novo
apartamento como se nele morasse uma fam璱ia inteira, n緌 a minha
de origem, bem entendido, que minha m綣 sempre nos imp盭
a ordem e a limpeza. Nos meus dom璯ios eu queria todas as
luzes acesas, a tevsempre ligada, os c獽odos bagun蓷dos, a
lou蓷 acumulada na pia. Liberdade, afinal.
Agora eu trabalhava no departamento de pessoal de uma
r墂io e 跴 vezes ajudava os locutores, selecionando as cartas
de ouvintes que iam ao ar e conduzindo os entrevistados ato
estio. Era o melhor emprego que eu jamais sonhei, um
leg癃imo golpe de sorte, o ico da minha exist瘽cia, atonde eu
lembrava. Perto do Natal e com uma coloca誽o tempor嫫ia em
uma farm塶ia, atendi a diretora e voz-s璥bolo da r墂io, K嫢ia
Summer, conhecida como a Voz do Ver緌, e me declarei fdela
e da emissora. Continuei atendendo K嫢ia enquanto o Natal
n緌 chegava, indicando as pastilhas para a garganta mais
eficazes e baratas e os sprays colut鏎ios de sabor menos
repulsivo. No meu ultimo dia, ela me deu um cart緌 e mandou
procurla na r墂io.
Uma semana depois, jcom mesa, crachde funcion嫫ia
e carteira assinada pela Baticum FM, eu era a mulher mais
feliz do mundo. A mulher feia, pelo menos. Aquela era a grande
oportunidade da minha vida e eu estava decidida a aproveitla
como tal. Na aus瘽cia de um homem para ocupar meu corpo e
minha cabe蓷, eu pensava na r墂io o tempo inteiro. E foi assim
que, em uma tarde, entrei na sala de K嫢ia Summer.

- Sabe, K嫢ia, eu acho que esse slogan, A Voz do Ver緌,
restringe muito o seu alcance. E se vocmudasse para K嫢ia
Summer, A Voz de Todas as Esta踥es?

K嫢ia n緌 apenas concordou, como passou a ser
anunciada conforme eu havia sugerido. Foi meu primeiro grande
瞡ito profissional e eu sabia que viriam outros. Pela primeira
vez eu experimentava as maravilhas da autoconfian蓷 e
estava encantada comigo.
Aldomara, a filha da dona do meu novo apartamento, era
a telefonista da r墂io. Para compensar um rosto pr闛imo da
hecatombe, Deus deu a ela uma voz macia e modulada, que a
fazia sonhar em trocar o PABX pelos microfones. Para isso
Aldomara tinha aulas de t嶰nica vocal e apresentava
gincanas e eventos em uma igreja, como treinamento para uma
futura estr嶯a na Baticum FM. Aldomara falava o tempo
inteiro como se estivesse em um programa de r墂io,
empostando a voz e se referindo a todos como ouvintes, qualquer
que fosse a situa誽o. Quando queria sair comigo, ela irrompia
no departamento de pessoal, onde seu trabalhava, e antes de
entrar no assunto saudava as multid髊s.

- Boa-tarde, ouvintes desse Brasil t緌 grande e t緌 cheio
de belezas e riquezas. Este convite vai para nossa ouvinte Ju,
para participar, logo mais, de um programa informal no bar
Oriente, com direito a cerveja gelada e amendoim torrado.
Vocaceita, Ju?

Em um domingo, quando levei Aldomara para almo蓷r
na casa dos meus pais, n緌 restou didas para ningu幦 de
que ela possu燰 alguma perturba誽o mental. A mesa,
Aldomara contava fatos de naturezas diversas como se narrasse o
Fant嫳tico, enunciando antes uma esp嶰ie de manchete sobre
o que iria falar e emitindo efeitos sonoros com a boca para
separar um tema do outro. Eu, que jestava acostumada com as
performances dela, consegui devorar tr瘰 ou quatro pratos de
estrogonofe sem maiores estranhezas. Jpara minha fam璱ia

102 103

foi mais dif獳il controlar os acessos de riso e ata irrita誽o.
O sil瘽cio e a paz n緌 existiam com Aldomara por perto.
Seja como for, eu vivia uma fase feliz e K嫢ia Summer
havia mesmo me acenado com a possibilidade de ajudla na
produ誽o do programa da tarde. Uma chance que eu pretendia
agarrar com unhas ro獮as e dentes cheios de obtura踥es, mas
nem por isso menos preparados para a luta.

Na noite de quarta fiquei atmais tarde na r墂io, jcom
o objetivo de me mostrar dispon癉el para K嫢ia. Quando
cheguei ao ponto de 獼ibus, quase dez da noite, me deparei com
um escoteiro. N緌 um menino, mas um escoteiro adulto, as
coxas peludas saindo do cal誽o c嫭ui e as meias brancas,
imaculadas, na altura do joelho.

- Boa-noite.

Ele me cumprimentou educadamente, com certeza uma
das boas a踥es previstas no Manual do escoteiro. Era
estranho estar na rua ao lado de um homem de cal蓷s curtas e
len蔞 no pesco蔞, mas pelo menos eu estaria protegida, caso
algum malfeitor me amea蓷sse. Respondi, gentil:

- Boa-noite.

- Sorte sua eu estar aqui. Jpensou uma mo蓷 atraente
sozinha nessa parada escura?

Ele disse mo蓷 atraente, e com certeza estava praticando
outra boa a誽o. Ningu幦 nunca havia me chamado assim.

- Mas vocacha esse lugar perigoso?

- Nossa. As estat疄ticas apontam a m嶮ia de um
assassinato por dia neste morro.

O medo que senti me fez estremecer por v嫫ios segundos
consecutivos. Assustada ou excitada, eu reagia assim,
tremendo como se tivesse Parkinson.

- Ficou apavorada? Nada disso. Comigo aqui, ningu幦
toca um dedo em voc

Enquanto durou a espera pelo 獼ibus, ele me falou da
filosofia do escotismo e dos princ甑ios de Baden Powell, que
atent緌 era nome de violonista, para mim. Sentamos juntos
e deixei minha casa passar para continuar ouvindo os
princ甑ios do escotismo por mais algumas quadras.

- Posso acompanhar vocatsua resid瘽cia?

- Puxa, eu estava t緌 distra獮a ouvindo suas hist鏎ias
que perdi minha parada. Agora preciso ir ato centro.

- Sua casa fica longe daqui? O t嫞i custaria mais de cinco
reais?

Se custasse, eu completaria o valor. Foi o t嫞i arrancar e
jest嫛amos nos beijando e abra蓷ndo, felizes como snos
primeiros beijos e abra蔞s poss癉el ser.

- Vocn緌 tem uma torneira pingando, uma boca de g嫳
com vazamento, algo para consertar? Sei arrumar tudo em
uma casa, sabia?

Fiquei com a impress緌 de que, se eu n緌 estivesse um
tanto acima do peso, ele me carregaria pela escada. Depois de
tirar minha roupa toda, o que me provocou alguns segundos
de arrepios constantes, ele come蔞u a despir seu uniforme.

- Por favor, n緌. Vocfica t緌 bonito assim. Dpara s abaixar o cal誽o?

Tudo aconteceu com o escoteiro de uniforme completo,
incluindo o len蔞. Ele era escoteiro da terra, acho que a cor
c嫭ui da sua roupa significava isso. Se meu irm緌 Everton
ainda guardasse o velho Manual do escoteiro mirim, com os
sobrinhos do Pato Donald ensinando sobreviv瘽cia e bondade
para as crian蓷s, eu esclareceria essa e outras didas que a
breve conviv瘽cia com o escotismo jhavia me trazido.

104 105

Por que n緌 se pode fazer fogo com madeira verde?

Qual o 滱gulo correto para um rel鏬io de sol marcar o hor嫫io
de Brasilia?

Como posso saber se a cobra que me picou na selva venenosa?

Qual a t嫢ica para abordar um velhinho em apuros sem ser
confundido com um assaltante?

Comnsumatum est, o escoteiro levantou da cama alegando
calor. Suando muito, principalmente no pesco蔞 envolvido
pelo len蔞 c嫭ui, ele fez uma vistoria no apartamento em
busca de eletrodom廥ticos para consertar, quadros para
pendurar ou utilidades para instalar. Foi feliz em todas as etapas
da sua busca. Eram quase seis da manhquando ele me
despertou com a mesa posta para o cafe um pedido.

- N緌 use nada no desjejum, por favor.

Sempre nua, acompanhei-o ata porta.

- Encontro vocna parada do 獼ibus?

- Dificilmente. Eu estava ali por acaso, depois de
acompanhar uma senhora de idade.

- Como eu vejo vocde novo?

- Vou ficar com o seu telefone. Um timo beijo.

Tremi descontroladamente enquanto o beijava. Se eu
n緌 fosse uma garota direita, imploraria a ele por mais uma
boa a誽o, antes que o mundo nos separasse.

- Eu sei que vocmuito jovem, mas jpensou em
consultar um m嶮ico sobre Parkinson?

- N緌 se preocupe. Eu sou assim mesmo.

Ele levantou os dedos no que me pareceu ser uma
sauda誽o para iniciados e sumiu pelas escadas. Mais tarde, na
r墂io, dividi com Aldomara o segredo da noite anterior.

- Cara ouvinte, vocarrumou o homem perfeito e o
deixou ir embora sem pegar o endere蔞? Mas ela estbrincando
com o pr鏕rio destino, Brasil!

- Perfeito ele n緌 era. Estava de cal誽o.

- Mas bem que, na hora, a ouvinte gostou. N緌 deixou
sequer o rapaz ficar vontade, ouvintes! Vamos fazer uma
a誽o conjunta e localizar esse cidad緌 pelo telefone!

Se algu幦 conhecer o escoteiro, ligue para a r墂io e
informe o paradeiro! Aten誽o para o nome dele na voz da nossa
ouvinte...

- Eu n緌 sei o nome dele, Aldomara. Esqueci de perguntar.



K嫢ia Summer realmente passou a me delegar tarefas na
produ誽o da r墂io. Em pouco tempo eu fazia os contatos com os
entrevistados, selecionava as not獳ias que iam ao ar, acompanhava
as equipes nas externas, tudo nos intervalos das minhas
fun踥es no departamento de pessoal. Eu trabalhava muito e me
esfor蓷va para ser competente em tudo. K嫢ia percebia e cada
vez eu ganhava mais responsabilidades, alem de cuidar da
folha de pagamento. Atque um dia, quase nove da noite, ela
me chamou.

- Ju, pensei em uma nova fun誽o para voc Acho que
esse seu jeito compreensivo, prestativo, seria perfeito para
responder 跴 didas e reclama踥es dos leitores no ar. Pegue
aquela pilha de cartas, estude as respostas e vamos gravar um
piloto amanh Se der certo, vocganha um hor嫫io fixo.

106 107

Eu, locutora de r墂io. Ou titular do Servi蔞 de
Atendimento ao Ouvinte Baticum FM, esse era o melhor nome para o
programa. Isso se meus rec幦-adquiridos del甏ios de
grandeza n緌 sugerissem Servi蔞 de Atendimento da Ju, SAI, o
mais novo sucesso no seu dial. Minha m綣 n緌 acreditaria.

Passei a tratar minha voz como um bem a ser garantido.
Fazia parte dos meus cuidados banir toda e qualquer bebida
gelada do card嫚io, o que inclu燰 o Nescau batido com leite, o
iogurte l甒uido e os sucos que eu ingeria v嫫ias vezes ao dia.
Ja Coca-Cola continuei bebendo em todas as refei踥es, s que quente, o que muitas vezes me provocava a sensa誽o do
vulc緌 Etna explodindo no meu est獽ago. Sorvetes tamb幦
entraram no 璯dex dos proibidos e tiveram sua falta
compensada por balas e chocolates. Completavam o tratamento
gargarejos de 墔ua e sal, exerc獳ios para as cordas vocais e mel,
muito mel. Se poucas colheradas jfaziam efeito, imagine
vidros inteiros.

O programa foi ao ar e logo virou campe緌 de audi瘽cia
na r墂io. Os ouvintes eram atra獮os por minha voz agora
l璥pida, ainda que um tanto estridente, e pelas respostas que eu
preparava para as cartas endere蓷das Baticum FM.



"A ouvinte In瘰 Alencastro escreve para saber por que a
Baticum FM, possuindo essa raz緌 social, quase n緌 toca a
mica do nosso pa疄. Bem, D嶵ora, a diretora da nossa r墂io
segue a linha do rock. Mas jestamos providenciando um
espa蔞 de ziriguidum para ouvintes como voc que t瘱 o
samba no sangue. N緌 perca, a partir de maio, o Baticum Brasil,
nas madrugadas da nossa r墂io. Quero ver vocdormir agora,
D嶵ora. Um grande abra蔞."



"O ouvinte Michel, que n緌 informa o sobrenome, diz que a
Baticum FM perdeu a personalidade e hoje se confunde com
a paisagem do FM. Confunda mas n緌 ofenda, Michel. A
Baticum a r墂io mais original do Brasil. Ou蓷 as concorrentes
com aten誽o e depois, se vocn緌 ficar surdo, volte para
conversar. Abra蔞s da nossa equipe."



"A ouvinte Mima pergunta se o locutor Eduardo S. t緌 lindo
quanto sua bela voz. Bem, Mima, quem respondeu para voc foi a mulher do Eduardo. E ela disse tantos palavr髊s que eu
n緌 posso repetir no ar. Tudo de bom para voc"



Eu estava t緌 feliz com minhas novas atividades e vinha sendo
t緌 respeitada por causa delas que, durante algum tempo,
pensei que o mundo havia se esquecido da minha feia.

Mera ilus緌.

Um dia surpreendi um dos operadores de mesa e o
locutor do notici嫫io do meio-dia falando da sorte da Baticum por
ser uma emissora de FM.

- Se fosse TV, a Ju entrava no ar e a censura cortava a
imagem. Perigava atcassar a concess緌, ha, ha.

Fui para casa abalada. E me afundei ainda mais no trabalho.

Mesmo quando jn緌 tinha tarefas a cumprir eu sa燰 tarde da
r墂io, na esperan蓷 de encontrar o escoteiro na parada de 獼ibus.

108 109

Quantas caronas recusei e quantos t嫞is reneguei, apenas para
esperlo no local onde o vi pela primeira e tima vez.
Aldomara, que acabou se afastando de mim, reflexo por
eu ter chegado aos microfones da Baticum enquanto ela
seguia telefonista, espalhou o caso do escoteiro pelos
corredores da emissora.

- Aten誽o, ouvintes: ela n緌 perguntou sequer o nome
do sujeito. Foi como ter o bilhete premiado na m緌 e jogar no
lixo. por causa de gente assim que essa terra n緌 progride,
caros ouvintes do Mampituba ao Chu

Estranho que, como mulher feia que era, Aldomara ainda
n緌 tivesse entendido que a vida amorosa da nossa esp嶰ie, e
por vezes de todas as mulheres, feita de epis鏚ios curtos.
E n緌 de grandes seqncias.


4.10. Rocha


Ele era bonito, acho que um metro e noventa, loiro,
educado e se chamava Rocha. Tinha tudo para nunca perceber
minha exist瘽cia, mas era atencioso e gentil demais at mesmo para um porteiro, fun誽o que desempenhava na
Baticum FM.
No in獳io pensei que me tratasse com tal respeito por eu
ser, afinal, uma comunicadora em ascens緌, dona de uma das
maiores audi瘽cias da r墂io com o meu programa de
atendimento ao ouvinte. Sobre isso, ali嫳, havia novidades.
Embora eu tratasse meu trabalho com toda a seriedade,
o Servi蔞 de Atendimento ao Ouvinte Baticum FM passou a
ser considerado a produ誽o mais engra蓷da jamais veiculada
por qualquer r墂io do Sul. Eu ia para casa, selecionava as
cartas, ficava escrevendo respostas ata madrugada chegar e,
em lugar de seguir meus conselhos, a audi瘽cia ria de mim.
Mais que isso, gargalhava.
Quem me alertou para o fato foi K嫢ia Summer. Com a
voz que deixava bonitos atos pedidos de cheeseburger com
queijo duplo que fazia ao telefone, K嫢ia perguntou se eu
conhecia a real percep誽o dos ouvintes sobre o meu programa.

- Espero que as pessoas saibam que eu respondo 跴
cartas com toda a minha alma e todo o meu cora誽o.

- Imaginei que voccometesse esse equ癉oco. Sente a
Ju. Precisamos conversar.

K嫢ia ent緌 contou que tinha sido procurada por um dos
jornais da cidade em busca de informa踥es sobre o programa,
julgado por muitos uma vers緌 piorada dos humor疄ticos do
Tiririca ou do Jo緌 Kl嶵er ou algo assim. Atfalar com K嫢ia, o
jornal achava que a produ誽o era propositadamente ruim, ou
trash, como a rep鏎ter classificou, chamando de lixo todo o
meu esfor蔞.

- Mas, K嫢ia, se os ouvintes pensam que n鏀 estamos
fazendo piada, o Servi蔞 de Atendimento ao Ouvinte Baticum
perde toda a raz緌 de existir. Snos resta terminar com o
programa.

- Eu tenho a impress緌 de que para voc Ju, sempre preciso contar a hist鏎ia do mundo desde o in獳io, come蓷ndo
pela parte em que 廨amos amebas mergulhadas no grande
caldo c鏀mico.

- Ju, o programa n緌 vai acabar.

- Vocvai seguir no ar respondendo 跴 cartas. Foi isso
que deu certo, de um lado sua sinceridade hilariante e, do

110 111

outro, os ouvintes, desacostumados com a verdade,
acreditando que vocestali para fazer um humor da pior esp嶰ie.
Ju, acredite em mim: vocum sucesso.

N緌 virei capa do Segundo Caderno, n緌 parei nos
notici嫫ios da televis緌, n緌 fui reconhecida nas ruas. A rep鏎ter
do jornal conversou comigo na r墂io, mas foi embora sem
tirar a m嫭uina fotogr塻ica do estojo.

- Melhor assim. Vamos deixar o ouvinte imaginar o seu
rosto. muito mais instigante.

N緌 fiquei mais feliz com tanta aten誽o, pelo contr嫫io.
O que o mundo estava fazendo era debochar dos meus
prop鏀itos e se divertir com a minha exposi誽o.
Azar.
Eu n緌 deixaria que a humanidade acabasse com a
melhor fase da minha vida. E foi assim que continuei
respondendo 跴 cartas, que agora n緌 eram apenas de ouvintes
querendo saber o estado civil dos locutores, ou reclamando da
programa誽o da emissora, ou elogiando, muito esporadicamente,
uma ou outra mica pelas lembran蓷s perdidas que ela havia
trazido. Agora, os ouvintes, e em particular as ouvintes, me
escreviam tamb幦 para pedir conselhos sentimentais.

"Ju, eu e minha melhor amiga estamos gr嫛idas do mesmo
homem, que se nega a assumir qualquer um dos filhos. Voc acha que devemos consultar o mesmo advogado, para facilitar
os tr滵ites?

Lu瞵a, de Caxias, em nome tamb幦 de Bianca, da mesma
cidade."


"Em primeiro lugar, Lu瞵a, n緌 posso deixar de
observar que existe uma certa dose de pouca-vergonha no seu
caso. Sfalta vocme dizer que as duas engravidaram na mesma
sess緌. Bem, ap鏀 consultar informalmente as doutoras
Santa e Milene, advogadas da Baticum FM, aconselho voc瘰 a
constitu甏em advogados diferentes. A justi蓷 conservadora
e quanto menos o tribunal se parecer com uma grande orgia,
melhor. Pelo menos quando estamos olhando. Bom parto para
voce sua amiga."

"Cara Ju, depois de muitos anosfreqntando cultos
evang幨icos com a exclusiva inten誽o de manter rela踥es 璯timas com
as fi嶯s, que se caracterizam por preservar a virgindade
cl嫳sica e n緌 fazer restri踥es a outras pr嫢icas. creio ter ouvido o
chamado do Senhor. Vocacha que ainda hsalva誽o para a
minha alma?

Rudi, de Veran鏕olis"

"Rudi, creio que sua alma irse salvar. Mas ap鏀 o seu
relato, temo pelo que possa acontecer ao seu corpo. Boa sorte
para voc"


"Ap鏀 sete anos de casamento, meu marido n緌 me procura
mais,. Vocconhece algum m彋odo realmente eficaz para me
ajudar a reconquistlo? Desde j obrigada.

Carmen, de Porto Alegre."


"Querida Carmen, casamento uma loteria. N緌 sei
como vocera e no que se transformou: n緌 sei se seu marido
ainda o mesmo de sete anos atr嫳 ou se hoje outro homem,
provavelmente pior. Mas se vocme permite, tamb幦 n緌
acho que isso tenha grande import滱cia. Meus pais s緌
casados hmais de trinta anos e, desde que posso lembrar, eles
s緌 p廥simos um com o outro. Acho que o seu caso n緌 tem
solu誽o. Se seu marido voltar a procurar voc serpor uma

112 113

situa誽o circunstancial, uma bebedeira ou um momento de
grande solid緌. melhor vocn緌 fazer nada. Qualquer
conselho meu pode precipitar as coisas. Grata pela sua carta."


O volume da correspond瘽cia que eu recebia aumentou tanto
que agora Aldomara me auxiliava, selecionando comigo as
cartas mais interessantes. Em breve, ela tamb幦 teria sua chance
na Baticum FM, entrevistando pessoas comuns na rua, em
busca de solu踥es para a pol癃ica, a economia e a cultura. Meu
sucesso estimulou K嫢ia Summer a pensar em novas atra踥es
interativas, que era como ela se referia ao tipo de comunica誽o
que eu fazia. Jo plico e os jornalistas chamavam de trash.
Numa noite em que sacansada da r墂io, depois de
passar quase dezoito horas trabalhando tanto no programa
quanto no departamento de pessoal, encontrei o porteiro de um
metro e noventa sem sua roupa de porteiro, parado na entrada
do pr嶮io.

- Seu Rocha, quase n緌 reconheci o senhor.

- Pois estava le esperando, dona Ju. Pensei em
acompanhar a senhora ato ponto de 獼ibus.

Rocha falava moda gaha, engolindo o "h" da
part獳ula "lhe" e dando a ela um certo ar espanhol.

- Ora, quanta gentileza. Vamos, ent緌?

Era o segundo homem que demonstrava interesse por
mim naquele ponto de 獼ibus, e talvez fosse o segundo em
toda a minha vida, desde que o escoteiro n緌 o houvesse feito
por raz髊s humanit嫫ias. Senti uma ponta de amargura ao
pensar nisso.

- Sabe, dona Ju, eu sou um homem muito direto. Por isso
decidi le dizer hoje o que venho sentindo htempos. Estou
interessado na senhora, essa a verdade. Sou solteiro, tenho
dois filos de um casamento anterior e fa蔞 um curso prvestibular
para melorar de vida. Minhas inten踥es s緌 s廨ias e
quero aqui pedir a chance de demonstrar isso para a senhora.

A declara誽o de inten踥es de seu Rocha me pegou de
surpresa. O homem era t緌 determinado quanto um profissional
da portaria deveria ser e tamb幦 articulado como jamais
imaginei que algum deles fosse. Preconceito, essa eterna
fonte de enganos. Quanto ao "lh", ele n緌 os engolia apenas
na part獳ula "lhe", mas em qualquer palavra que possu疄se a
s璱aba.

- Bem, seu Rocha, n緌 posso negar que sempre o achei
muito agrad嫛el e, se me desculpa o atrevimento, bonito. Mas
nunca considerei nenhum tipo de rela誽o com o senhor que
n緌 fosse eu entrar e sair e o senhor me abrir e fechar a porta.

- Pois saiba que sempre le tive em grande estima, dona Ju.

N緌 me ocorreu outra resposta sen緌 uma pergunta: por
que n緌?

Seu Rocha, quer dizer, Rocha desceu do 獼ibus na minha
casa e lpassou a noite. Respeitador, ap鏀 uma madrugada
inteira de conversas na sala, eu em uma poltrona, ele na outra,
pediu licen蓷 e deitou no sof de roupa, tendo o cuidado de
deixar os sapatos arejando na 嫫ea de servi蔞.
Na manhseguinte, chegamos de m緌s dadas Baticum
FM. Rocha n緌 apenas me acompanhava, ele me ostentava,
para minha pr鏕ria surpresa e das demais pessoas do mundo.
Eu jhavia visto isso algumas vezes, homens caminhando
orgulhosos ao lado de minhas irm綼 de feia. Snunca achei
que pudesse acontecer comigo.
No final do dia, Rocha levou seu uniforme para lavar na
minha casa. Preparei o jantar e fomos para o meu quarto. Ele

114 115

estava nervoso e nossas intimidades resumiram-se a um
r嫚ido sexo oral, eu no papel ativo da coisa. Rocha dormiu
imediatamente, n緌 sem antes grunhir algo sobre estar
apaixonado por mim.
A situa誽o continuou a mesma nas semanas seguintes.
Com o fracasso das minhas indiretas para que
experiment嫳semos outras modalidades de sexo, decidi abandonar as
sutilezas. Depois de um dos muitos jantares que eu jhavia
providenciado e patrocinado para ele, e cujas sobras Rocha fazia quest緌
de levar em uma quentinha para almo蓷r no meio-dia
subseqnte, fiquei nua e conduzi tudo de maneira a obriglo a agir.
Como tentasse fugir, deitei meu corpo sobre o dele, e que
maravilha apoiar todo o meu peso contra aquele s鏊ido metro e
noventa, sem o risco de esmigalhar seus ossos no colch緌.

- Eu n緌 consigo.

Rocha repetiu a confiss緌 em voz baixa por tr瘰 vezes, e s ent緌 eu entendi. Vesti um chambre estampado, presente da
minha m綣, e esperei na sala que ele esclarecesse o assunto
comigo. Muito tempo depois, ouvi seus roncos fortes vindo do
quarto. Como era seu h墎ito, o porteiro dormia o sono dos justos,
excepcionalmente sem um orgasmo antes, naquela noite.

- Isso uma vergonha. Meu Brasil-anil-varonil, que atitude
resta a essa ouvinte sen緌 abandonar o Rocha? Ou eu deveria
dizer... o Broxa?

- Fale baixo, Aldomara. Contei essa hist鏎ia spara voc
n緌 para todo o pa疄.

- Ouvintes da Baticum FM, se voc瘰 querem que o Broxa
vpara o pared緌, liguem meia-meia, meia-morta, meia-mole,
meia-dura.

- Sua imita誽o de animador de audit鏎io rid獳ula,
Aldomara. Esque蓷 o que ouviu aqui e n緌 abra essa sua boca
para ningu幦. Vou tratar do meu problema sozinha.

Mas a verdade que eu n緌 sabia que solu誽o dar para o
caso.
Como se nada houvesse acontecido, Rocha continuou indo
para a minha casa todas as noites. Sua presen蓷 come蔞u a
atrapalhar o meu trabalho no Atendimento ao Ouvinte Baticum FM.
Agora eu spodia responder 跴 cartas depois de lavar a roupa
dele, preparar o jantar e participar de uma sess緌 unilateral de
sexo oral. E quando finalmente me via diante de uma pilha
de cartas para ler, os roncos de Rocha atravessavam todas as
paredes e vinham me encontrar onde eu estivesse, perturbando
minha concentra誽o e levando embora minha inspira誽o.

"Cara Ju, preciso do seu conselho. para resolver um
grande problema. Namoro um homem bom, honesto, solteiro, sem v獳ios,
bonito at mas que, em seis meses de relacionamento, jamais
encostou um dedo em mim. E.&~e homem i~ofre de impot瘽cia para
ntanrer n~ia諘e~ ,~exuab~, reayindo UJ)~UW~ qUUtLUE) ~AtImuiuaO
ora/mente. Se perguntado porque, ent緌, nunca utiliza o mesmo
procedimento em mim, responde que n緌 gosta e ordena que eu
continue o servi蔞. O tal homem vive hoje praticamente na minha
casa e minha custa, sendo eu a respons嫛el porsua
alimenta誽o e pela limpeza de suas roupas. Cara Ju, voc que sempre tem
palavras t緌 sensatas para os ouvintes, me ajude a resolver
essa situa誽o e lhe serei grata para sempre.

Assinado, Ju."


Meu inferno jcontava sete meses, recorde absoluto da
perman瘽cia de um homem ao meu lado. E que permanencia.

116 117

Rocha se comportava cada vez mais como dono da casa e
de mim, reclamando do meu tempero e exigindo suas camisas de
porteiro ainda mais brancas do que eu lavava. Ent緌, quando
eu jachava que um dia comemorar燰mos nossas bodas de
prata com uma noite especial de sexo oral nele, o final chegou.
Depois de arrumar a cozinha, eu lia as cartas dos meus
ouvintes e Rocha assistia um humor疄tico qualquer na televis緌.

- Ju, venha c Quero le mostrar uma coisa.

- Jcansei de ver o que vocquer mostrar, Rocha. Hoje
eu vou trabalhar.

- Ju, s廨io. Preciso que vocveja.

Durante minha longa vida solit嫫ia, muitas vezes
desejei um homem chamando meu nome com urg瘽cia. Agora que
tinha um, tudo o que isso significava era mais trabalho, mais
despesas e uma futura inflama誽o nos maxilares, a se manter
o ritmo atual das minhas obriga踥es de esposa.
Encontrei Rocha em frente ao guarda-roupa, a pilha de
camisas de porteiro nas m緌s.

- Veja, Ju. Elas jn緌 s緌 alvas como antes. Talvez seja o
sab緌 em pque vocusa. O que podemos fazer?

- Quem sabe colocar todas as camisas em uma sacola
para deixlas na lavanderia, quando vocfor para a sua casa?

- N緌 se ofenda, querida. Estou sfazendo uma
observa誽o, sisso. Basta olar as camisas com aten誽o e vocmesma
vai reconhecer.

- Eu quase n緌 acredito que vocme tirou do trabalho
para ver esses trapos amarelados. Chega, Rocha. O
Restaurante e Tinturaria Ju acaba de fechar as portas para voc

- Vocestnervosa e resolveu descarregar em mim, mas
eu entendo. Volte para as suas cartas, se elas s緌 t緌
importantes. Amanhpensamos juntos no problema das minhas camisas.

- N緌 existe problema, Rocha. A lavanderia certamente
vai resolver tudo. Por favor, vembora da minha casa.

Eu tremia quando me servi de um copo com 墔ua e foi
dif獳il controlar meus movimentos enquanto colocava ali
v嫫ias colheres de a踖car; velha e deliciosa receita caseira que
eu me prescrevia sempre que perdia a calma. Para garantir
a efic塶ia do tratamento, adocei ainda mais a 墔ua. Comecei a
juntar as coisas que Rocha espalhara pela sala, o chinelo de
tecido, estilo "chinelo do papai", o cortador de unhas, os
鏂ulos de grau comprados na farm塶ia da esquina, o livro que ele
tentava ler hmeses, Quem mexeu no meu queijo?. Pelo menos
no meu queijo eu sabia exatamente quem estava mexendo.
Ele apareceu de uniforme, com os cabelos penteados
para tr嫳 e uma mala minha na m緌. Parecia n綦 acreditar
que em poucos instantes cruzaria a porta para nunca mais ter
comida e sexo oral t緌 f塶il. N緌 comigo, pelo menos.

- Estou indo. N緌 tem nada para me dizer, Ju?

Eu podia perguntar por que Rocha transformou nossa
vida sexual em uma maldi誽o - eu sem direito a qualquer tipo
de divertimento -, mas tive pena de ouvir a resposta. Acho
que o coitado sofria de disfun誽o er彋il na alma.

- Vocvai se arrepender. E sabe disso, n緌

Deixei que ele se fosse em sil瘽cio. N緌 me custava nada
dar a Rocha o benef獳io da dida, embora, na maior parte da
minha vida, nem isso houvessem me dado.
Poucos sabiam ser t緌 generosos quanto uma mulher feia.

118 119



5. CONCLUS鬃


TENDO POR BASE o que vivi, e imaginando o que ainda vou viver,
minha inten誽o primeira era encerrar este estudo com uma
conclus緌 l鏬ica: a mulher feia enfrentarao longo de sua
trajet鏎ia, em maior ou menor grau, ineras dificuldades
em todos os seus relacionamentos, n緌 apenas os afetivos,
mas tamb幦 os sociais.
Imagem tudo, dizem os nossos dias.
No entando, fatos acontecidos ao longo deste trabalho
me obrigam, se n緌 a mudar os rumos da conclus緌, ao menos
a tornla mais abrangente. Minha nova tese que n緌 sas
mulheres feias se ver緌, com freqncia, diante de
desencontros e desencantos, mas que tais situa踥es ocorrer緌 com as
mulheres em geral. E, apesar da relev滱cia dos aspectos
psicol鏬icos neste processo, impossivel n緌 observar a
import滱cia dos fatores externos na formata誽o final da esp嶰ie.
As f墎ulas com pleb嶯as que viram princesas no timo
cap癃ulo, a leitura de livretos como Julia, Sabrina e Bianca, as
novelas de televis緌 com suas hero璯as sofredoras, sempre
recompensadas com um grande amor no final, a busca
desesperada para realizar ideais rom滱ticos antes mesmo da
realiza誽o profissional ou da maturidade emocional, tudo isso
torna a desgra蓷 acess癉el a todas. Obviamente, um rosto e
um corpo fora dos padr髊s e propor踥es da nossa 廧oca
contribuir緌 para a desgra蓷.

120 121

Essenciais para essa nova vis緌, que rompeu com o
ego疄mo das minhas pr鏕rias viv瘽cias, foram as cartas que
recebi das ouvintes da Baticum FM. Feias, bonitas, jovens,
experimentadas, inteligentes ou nem tanto, todas elas me
fizeram ver que nem sempre o insucesso estligado m apar瘽cia, como atent緌 eu acreditava. E como a duquesa da
Cornu嫮ia, Camilla Parker Bowles, desmentiu para o mundo inteiro.
Transcrevo a seguir algumas das cartas das ouvintes da
Baticum FM. E termino este livro com uma certeza.
Para feias e bonitas, muitas vezes a solid緌 a grande
escolha.


"Depois de passar a vida me envolvendo com homens de todos
os tipos, todos sempre estranhos (um sfazia sexo dentro de
uma piscina de pl嫳tico que mantinha ao lado da cama, outro
sconseguia ter uma ere誽o se eu o chamasse de "meu
filhinho, sem falar no cara que eu namorei por quatro anos e que
jamais pronunciava palavras terminadas em "緌 , ia e ado ),
conheci um rapaz que deixou toda a fam璱ia orgulhosa da
minha capacidade de conquista. M嶮ico, loiro, educado, forte,
fino, Heitor abria a porta do carro para mim e caminhava
sempre do lado de fora da cal蓷da, para que eu me sentisse
protegida por sua muralha de mculos. Nossas intimidades n緌
me entusiasmavam muito, verdade, mas eu era feliz com a
simples possibilidade de um dia tudo melhorar. Ent緌, quando
jpens嫛amos em casamento, Heitor come蔞u a agir de
maneira estranha. Em qualquer lugar onde estiv廥semos,
olhava para mim e fazia caras ferozes, selvagens at
simulando mordidas e arranhando o ar na minha dire誽o, como se
suas m緌s fossem as patas de um tigre. No in獳io pensei que
tudo terminaria com uma gargalhada, mas, encerradas suas
performances, Heitor permanecia s廨io como um felino ferido.
Mais algum tempo e ele passou a ter rela踥es comigo usando
uma m嫳cara de leopardo. Na festa dos setenta anos da minha
av depois de Heitor passar a noite assustando a
aniversariante com suas amea蓷s de ataque a mim, decidi n緌 vlo
nunca mais. Soube que ele passou meses deprimido com o
rompimento, fechado em casa como se estivesse em uma
caverna. N緌 voltei atr嫳. Ainda que demore a encontrar um
homem de quem eu goste, ou mesmo que nunca encontre, n緌
acredito que pudesse ser feliz com o cover do Tigr緌 do
Ursinho Puff. Minha m綣, inconformada athoje, n緌 concorda."

(E. N., 23 anos)



"Deixei de ser menina, virei adolescente e entrei na idade
adulta sem que a menor sombra de um peito, ou
preferencialmente de dois, passasse por mim. Se eu tinha gl滱dulas
mam嫫ias, meu corpo esqueceu. Poderia ir praia apenas de
cal誽o sem despertar a ira dos conservadores, mas nunca o
fiz. Se Deus me desse um busto como o que Pamela Anderson
ganhou dos cirurgi髊s, asim eu teria vontade de exibi-lo. Aos
catorze anos, quando todas as minhas amigas jusavam
suti ganhei um de presente, mais pela compaix緌 da minha
m綣 que pela necessidade. Continuei crescendo (menos na
parte do busto) e, como sempre acontece com as desva lidas,
um dia me apaixonei pelo garoto mais bonito da sala. Quando
soube do meu interesse, ele espalhou pelo col嶲io o seu
repio e ainda cunhou o apelido que desde ent緌 levo pela vida:
Tati T墎ua. Foi assim que vi a inven誽o do sutique aumenta
os seios como a salva誽o da minha sexualidade. Tratei logo de

122 123

comprar v嫫ios, de cores e modelos diferentes e, coincid瘽cia
ou n緌, as coisas mudaram para mim. Antes sem
pretendentes, tornei-me bastante popular entre os rapazes, com minhas
novas blusas justas marcando os contornos avantajados que
eu, de fato, n緌 tinha. O ico inconveniente era jamais poder
tirar o suti em hip鏒ese alguma, e conservlo mesmo
quando todas as outras roupas eram arrancadas. Pois
namorava Ronaldo jhavia alguns meses quando combinamos
uma viagem. Fiz minha mala na tima hora e, com a pressa,
esqueci de colocar meus suti綼 com enchimento. Pior: na
praia para onde fomos, n緌 existia sequer uma loja onde eu
pudesse comprlos. Eu tinha duas alternativas: assumir para
Ronaldo que nasci sem selos ou terminar tudo antes que ele
descobrisse. Preferi a segunda hip鏒ese. Nunca mais sada
cidade. Nunca mais sacom ningu幦. Nunca mais vou
namorar, pelo menos enquanto n緌 tiver dinheiro para pr鏒eses de
silicone."

(T. L., 35 anos)



"Sempre dei azar com os homens. N緌 o azar cl嫳sico de n緌
conseguir algu幦 ou de ser desprezada por eles, e sim a pouca
sorte de me acontecerem coisas bizarras quando estou em
companhia masculina. Na minha primeira vez, por exemplo,
com um garoto que mal conhecia, senti uma sita dor de
barriga no motel, e o motel n緌 tinha divis緌 entre o quarto e o
banheiro. Algum tempo depois, tomava banho de piscina nua
com um rapaz quando um vizinho invadiu o p嫢io em busca de
uma x獳ara de a踖car. Fazia sexo oral em um namorado que
morava com a fam璱ia e, a caminho do banheiro para cuspir os
excessos, fui cumprimentada pelo pai do rapaz, sendo
obrigada a beijar o velho nas duas faces. Levei um desconhecido
para o meu apartamento, depois de uma festa, e ele se foi
enquanto eu dormia, levando minha chave, vinte reais e a
minha calcinha preferida. Dormi na casa de um homem
casado cuja mulher estava de f廨ias na praia e,
inexplicavelmente, perdi minha blusa l Na manhseguinte, tive que ir
para o trabalho usando uma camisa da mulher do cara, cinco
neros maior que o meu. Final do m瘰 e eu, sem dinheiro,
fui para uma festa levando apenas algumas moedas para
voltar de 獼ibus. Depois de dan蓷r pouco e beijar muito um
sergipano que lestava, aceitei ir para a pens緌 onde ele estava
hospedado. De madrugada, quando quis ir para casa, vi que
uma das moedas havia ca獮o do meu bolso e estava grudada
na bunda do sujeito. Sem coragem de pedir a moeda, caminhei
quatro bairros para conseguir chegar em casa. N緌 sei o que
acontece comigo. N緌 sou feliz com os homens."

(J. D., 24 anos)



"Chamada costumeiramente de Tribufu e Tinhoso, para citar
dois dos meus apelidos menos ofensivos, cheguei aos
quarenta anos sem qualquer contato 璯timo ou mesmo de
amizade com os homens que conheci. De um deles, em uma festa
de amigo secreto no banco, cheguei a ganhar uma imagem de
S緌 Jorge, o protetor dos drag髊s. Se disser que passei a vida
sofrendo com tal situa誽o, estaria mentindo. Lpelas tantas
me acostumei com a solid緌 e passei a cultivar outros prazeres,
literatura, jazz, cinema de arte, pintura classica. o que fez
de mim uma pessoa bastante interessante. Uma pena que a

124 125

ica plat嶯a para a exposi誽o dos meus conhecimentos fosse
formada por meu pai e minha m綣. Em um dos poucos
anivers嫫ios a que fui convidada na vida, o de cinqnta anos de
uma prima t緌 solit嫫ia quanto eu, conheci Jane e Beth.
Simp嫢icas e comunicativas, as duas me trataram com aten誽o e
delicadeza. Entendi que eram um casal em um jantar na casa
delas. Nessa mesma noite fui apresentada para Simone e bem,
estou com ela athoje.
O S緌 Jorge que ganhei agora estna sala da nossa casa.
Por pura coincid瘽cia, ele era o santo de devo誽o de Simone."

(C. L., 41 anos)



"Domingo. Depois de amargar por tr瘰 anos a solid緌 t甑ica
das feias, encontro em uma festa um rapaz de apar瘽cia mais
ou menos aceit嫛el, disposto a me fazer companhia. Fico com
ele. Depois de algum tempo no vai-n緌-vai, combinamos nossa
primeira ida ao motel em telefonemas cheios de segredo. Eu
morava ent緌 com meu pai, homem antiquado e rigoroso, que
n緌 admitia a hip鏒ese de a filha n緌 ser mais virgem. Mal
sabia ele a dificuldade que havia sido encontrar um parceiro
para deixar de ser.
Dia marcado, primeira vez com ele. E primeira depois de
muito tempo para mim. A tima havia sido com um motoboy
que me entregou uma carta do SPC. No motel, pedimos uma
su癃e com hidro. Os sais de banho e a espuma ajudam a criar o
ambiente rom滱tico.
Depois das preliminares, levanto para buscar a
camisinha. Ele fica me esperando em meio espuma. E espera,
espera. E espera. Cansado da demora e sem entender meu
desaparecimento, vai me procurar. Ao chegar na porta do
banheiro, p嫫a: estou estendida no ch緌, com um grande corte
na cabe蓷. Desmaiada e ensangntada. Um espelho
quebrado na parede da pista do que aconteceu. Por uma dessas
fatalidades da vida, entrei com a testa na decora誽o do quarto.
Como n緌 acordo de maneira alguma, nem com tapinhas no
rosto, nem com o choro dele, nem com a funcion嫫ia da
portaria me aplicando uma respira誽o boca a boca, a solu誽o chamar uma ambul滱cia.
Cena 1. A ambul滱cia entra no motel.
Cena 2. Param嶮icos sobem as escadas e entram no quarto.
Cena 3. Eu nua, desmaiada ao lado da cama redonda.
Cena 4. Acordo no hospital, sem saber ao certo o que
aconteceu. Ao meu lado, me encarando com a maior tristeza que jvi
no olhar de algu幦, meu pai. O rapaz, esse eu nunca mais vi."

(P. C., 28 anos)



"Passava por uma fase solit嫫ia quando o conheci na
internet. Professor universit嫫io, bom texto, agrad嫛el, excelente
cultura geral. Depois de quase dois meses de conversas
di嫫ias por e-mail, marcamos um encontro no bar da faculdade
de direito. Ele prometeu usar um cravo na lapela. e achei
rom滱tico. Na hora marcada, estava l uma flor vermelha no
casaco. Um olho esbranqui蓷do denunciava sua cegueira
parcial e ele tinha uma perna s Fui embora antes que me visse
com o olho sadio e nunca mais respondi seus e-mails.
Continuo sozinha athoje."

(A. P. L., 31 anos)


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"Estava saindo com um cara legal, o genro que a minha m綣 j havia perdido a esperan蓷 de ter. Era bonito, inteligente, gentil,
boa companhia mesmo. Ia com ele a bares e festas e, pela primeira
vez na vida, estava me fazendo de dif獳il. Beijava e mais nada.
Um dia ele me contou ter encerrado um noivado de dois
anos depois que a noiva passou a evitar rela踥es com ele. Para
consollo, disse coisas como "essa menina era doente" e "acho
que ela enganava voccom outro". Enfim, tentei minimizar o
estrago causado pela mulher, atque chegou a minha vez.
Em uma noite, aceitei ir a um motel e, para minha
surpresa, o aparelho sexual do rapaz n緌 possu燰 mais de quatro
cent璥etros.
Entendi a noiva. Nunca mais aceitei sair com ele, nem
para tomar caf Existem problemas na vida que nem a
mulher mais sozinha do mundo precisa procurar."

(P. M., 34 anos)



"Morava no interior e casei aos vinte anos, sem ceder as
investidas do meu futuro marido. Na nossa noite de ncias, antes
mesmo de eu tirar o vestido, ele me pediu para ficar de p de
frente para a parede, levantou minha roupa e penetrou-me na
parte posterior, sem sequer me avisar sobre o que iria
acontecer. Gritei como nunca na vida e ent緌 desmaiei. Acordei no
hospital, com a m綣 dele segurando minha m緌 e querendo
saber se eu estava bem. Me recusei a voltar para casa e a
separa誽o correu revelia do meu ex-marido. Por enquanto, n緌
penso em relacionamentos com mais ninguem."

(S. A., 25 anos)



"Me apaixonei por um homem gentil e extremamente
educado. Alternava o ingl瘰 e o franc瘰 com seu portugu瘰
perfeito e passava jantares inteiros declamando Cam髊s para
mim. Era bonito, embora 跴 vezes me desse saudade de falar
tamb幦 sobre novela ou futebol. Sa燰mos havia um m瘰
quando ele me convidou para uma viagem ao campo.
Passamos o dia observando flores e conversando sobre a beleza dos
recursos naturais. Quando deitamos para dormir, ele n緌
tirou os 鏂ulos, nem as meias, e continuou me tratando com a
delicadeza habitual. No final, que chegou r嫚ido, perguntou
se n緌 havia me machucado. Na volta para a cidade, encerrei
nossas rela踥es com uma carta educada e o nome dele escrito
caprichosamente no envelope. Quando penso nele, acho
muito mais interessante a minha atual solid緌."

(S. L., 28 anos)



"Sempre aproveitei as oportunidades com vontade,
principalmente porque elas n緌 costumam se apresentar com facilidade
para mim. Fiel a esta filosofia, ap鏀 meia hora de conversa j estava abra蓷da a um homem de rabo-de-cavalo que encontrei
na formatura de uma amiga. De repente, ele come蔞u a falar de
carros. Entre um beijo e outro, murmurava coisas sobre
arranque, pot瘽cia, motor, surdinas, e acho que sn緌 falou da
rebimboca da parafuseta para n緌 quebrar o clima. Ele tirou a
camisa e me mostrou suas tatuagens. Eram bielas e pist髊s
pelos bra蔞s e um motor de seis cilindros na perna. Depois de
uma performance fraca, o homem dormiu em cima de mim e
seu bra蔞 come蔞u a causar minha morte por asfixia. Tentando
me livrar do corpo, enrosquei o anel que usava no cabelo dele.

128 129

- O que vocfez?
O homem levantou de um pulo, levando meu anel nos
cabelos e quase arrancando meu dedo indicador.
- Meu implante. Vocestragou meu implante.
Eu n緌 sabia, mas ele usava interlace, m彋odo dos
carecas da 廧oca parecerem Sans髊s.
A hist鏎ia chega ao fim com o homem sendo obrigado a
cortar seus cabelos falsos, que terminaram por entupir a pia
do meu banheiro. Depois disso, ele bateu a porta e sumiu, e
meu anel desapareceu tamb幦. Isso aconteceu htr瘰 anos.
Desde ent緌, espero todos os dias por outra oportunidade."

(R. B., 31 anos)



"Nunca tive um namorado oficial, o que me faz olhar com
aten誽o para todos os caras que passam perto de mim. Foi
assim que conheci G. Ele n緌 era exatamente lindo ou
inteligente, mas tinha seu charme. Falava bem e me fazia rir, o
suficiente para que eu me interessasse por ele. Sa璥os v嫫ias
vezes, atque chegou o dia de eu visitar seu apartamento.
Quando ele tirou a camisa, entrei em p滱ico. G. era
extremamente peludo. Perto dele, o peito do Tony Ramos parecia
sofrer de calv獳ie. Nos imaginei passeando na praia, ele uma
vers緌 pocket do Chewbacca de Guerra nas Estrelas, e n緌
consegui ir adiante. A partir dali, fugi ato peludo desistir de
mim. Depois soube que G. espalhou pela cidade que eu era
fr璲ida. Estou sem namorado athoje, mas n緌 sei se a fofoca
que ele fez tem alguma influ瘽cia nisso."

(A. R., 26 anos)



"Desde crian蓷 eu era considerada a chata, a complicada, a
mal-humorada, a azeda e, como muitas vezes ouvi nos apartes
disfar蓷dos de meus parentes, a feiosa da fam璱ia,
caracter疄ticas que se acentuaram com a idade. Tanto a minha quanto a
deles. Em uma noite de domingo, jcom quarenta e poucos
anos e morando na companhia do meu angor Sinval, decidi
buscar um v獮eo na locadora distante pouco mais de tr瘰
quadras da minha casa. Na volta, achei que um homem
caminhava muito pr闛imo de mim. Atravessei e ele atravessou
tamb幦. Por precau誽o, decidi andar pelo meio da rua, e o
homem me seguiu. Comecei a correr e logo escutei passos
r嫚idos no meu encal蔞. Corri mais ainda. Felizmente, alguns
rapazes saindo de um pr嶮io desencorajaram meu
perseguidor e consegui chegar a salvo.
No outro dia, almo蓷ndo na casa de minha m綣, contei
do perigo pelo qual havia passado.
- A cidade estmuito violenta. Eu podia ter sido
assaltada. Ou seqstrada. Ou atmesmo estuprada.
Minha av que ent緌 tinha mais de oitenta anos,
interrompeu sua sopa para um coment嫫io r嫚ido:
- Otimista, hein?"

(L. R., 42 anos)



"Era meu vizinho e um dia o encontrei chegando de muletas.
Havia quebrado a perna e passaria quatro meses engessado
ata coxa. Foi a primeira vez que falou comigo, e se mostrou
interessado em continuar a conversa mais tarde. No outro dia,
fui visitlo e terminei por ajudar no seu banho. Na quinta-
feira seguinte dormi com ele, o que exigiu de mim certa per獳ia

130 131

para n緌 esfacelar-lhe ainda mais a perna. Enquanto durou o
gesso, fui sua enfermeira, dom廥tica e namorada, n緌
obrigatoriamente nessa ordem. T緌 logo se viu curado, e jque
podia atcorrer, passou a fugir de mim. Hoje mal nos
cumprimentamos. Uma amiga sugeriu que eu entre com uma a誽o
trabalhista contra ele. Jque n緌 posso recuperar meu tempo,
que ele seja remunerado, ao menos."

(T. B., 32 anos)



"Sade casa disposta a dar fim na minha solid緌 de oito meses
e n緌 tive didas de que isso aconteceria quando ele me
abordou em uma boate escura e abafada. Era um negro alto e
simp嫢ico e, depois de alguns beijos, resolvi convidlo para ir ao
meu apartamento. Na sa獮a, fui pegar sua m緌 e ele n緌 tinha
um bra蔞. Que n緌 fez falta nem naquela e nem nas noites que
se seguiram, me levando a concluir que Deus havia
compensado a falta do bra蔞 dele com outros atributos. Um dia
terminamos, sem dramas e sem saudades. N緌 era mesmo em
casamento ou amor eterno que eu pensava quando n緌 encontrei a
m緌 dele."

(A. L., 30 anos)





AGRADECIMENTOS





ESTE LIVRO come蔞u como um conto (alguns dir緌 que deveria
ter continuado assim) para o editor Paulo Pires e virou uma
novela por sugest緌 de duas mulheres t緌 bonitas quanto os
textos que escrevem, Leticia Wierzchowski e C璯tia Moscovich.
Reclama踥es dever緌 ser feitas diretamente a elas.
Com inspira誽o descarada em Paul Auster, pedi a amigas -
todas bonitas, diga-se - hist鏎ias verdadeiras acontecidas com
elas (ou n緌) para encerrar este livro. O timo cap癃ulo,
portanto, n緌 existiria sem Julia Duarte, Patr獳ia Rocha, Paula
Luce, Lucia Riff, M嶯a Tajes, Lisiane Silveira, Roberta
Anacleto, Grace Meurer, Luciana Arnhold, Sabrina Guzzon, Cana
Paludo, Patr獳ia Mota, Maria Clara lajes, Sabrina Afonso,
Leah Macedo, Carla Schertel, Claudia Schneider, Larissa Roso,
Adriane Carvalho e Cibele Fontoura.
Outras cinco mulheres bonitas que foram importantes
nesta hist鏎ia: Paula Taitelbaum, Martha Medeiros, K嫢ia
Suman, Daniela Esp璯dola e Rosaura Cavalheiro.
Por timo, dois homens bonitos que n緌 poderiam faltar,
nem no livro, nem na vida: Theo (sempre) e Charles Cruz.





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